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Entrevista: Fátima Andréia Nascimento - Parte 1

06 / 2008

A agente comunitária de saúde Fátima Andréia Monteiro do Nascimento, moradora de Jardim Gramacho, na Baixada Fluminense, é titular do Programa Bolsa Família há quatro anos. Separada, mãe de três filhos, Fátima Andréia costuma fazer palestras que vão além da questão da saúde: “A gente trabalha pra construir um país que não nos reconhece como filhos verdadeiros. Não nos dão as mesmas oportunidades, as escolas públicas não preparam nossas crianças para serem, de fato, cidadãs. Queria um país mais justo, que as pessoas pudessem sonhar e que, se fossem ousadas, trabalhadoras, tivessem como alcançar os seus sonhos”. Confira a entrevista concedida ao Ibase (1).

 

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Democracia Viva (DV) – Onde você nasceu e quando?

Fátima Andréia Nascimento – Tenho 37 anos, nasci no Rio de Janeiro, na Rocinha. Minha mãe é mineira, meu pai era alagoano. Eles vieram pra cá numa época em que o Rio estava crescendo. Meu pai, pra trabalhar na construção civil, e minha mãe veio com minha avó pra trabalhar em casa de família, onde ela ficou morando depois que minha avó voltou. Meu pai trabalhava numa obra perto da casa onde minha mãe morava, e eles acabaram namorando. Casaram quando ela ficou grávida. Os patrões costumavam se responsabilizar pelas meninas que vinham do interior e arranjaram o casamento. Minha avó, que voltou para o Rio pra ajudar, comprou uma casa na Rocinha, onde eles foram morar depois de casados.

DV – Como foi sua infância? Sua família é grande?

Fátima Andréia Nascimento – Meu pai era mulherengo e tinha problemas com álcool. Minha mãe trabalhava como doméstica e só vinha pra casa de 15 em 15 dias. Nós éramos quatro filhos, mas duas irmãs morreram ainda equenas, só ficamos eu e meu irmão. Eu sou a mais nova. Enquanto minha mãe estava trabalhando, ficávamos na casa de uma conhecida, que ela pagava pra tomar conta da gente. Um dia, quando ela chegou do trabalho, meu pai tinha vendido a nossa casa, tinha ido embora. Minha mãe ficou muito sem apoio. Eu era bem pequena, mas lembro que passamos uma temporada na casa de uma amiga dela. Depois, minha mãe passou a morar definitivamente no trabalho e fui morar na casa de outra família.

DV – Você e seu irmão foram para a mesma casa?

Fátima Andréia Nascimento – Só até um certo período, depois fui pra um colégio interno e ele foi pra outro. Nesse período, minha mãe teve pneumonia e precisou ficar internada em um hospital em Jacarepaguá. O colégio pra onde fui, em Paquetá, era um preventório, um local para tratar crianças com tuberculose. Eu estava com uns 7 anos. E meu irmão ficou em um colégio em São Cristóvão, só para meninos. Antigamente era assim, cada um ficou num canto.

DV – Mas você também estava doente?

Fátima Andréia Nascimento – Não, era uma forma de profilaxia, mas fiquei recebendo tratamento como se estivesse, e olha que nem tinha assim tanto contato com minha mãe, mas foi o que fizeram. Fiquei lá até os 12 anos.

DV – Como foi a vida no colégio interno?

Fátima Andréia Nascimento – Muito boa, foi a melhor época da minha vida. Era um colégio de freiras, podia brincar, me alimentar, tinha roupa lavada, escola, brinquedo, uma cama só pra mim. Não precisava disputar para ter as coisas, como acontece na vida aqui fora. Minha vida era tranqüila, não tinha nenhum tipo de necessidade.

DV – E como você lidou com a ausência da família?

Fátima Andréia Nascimento – Meu pai foi uma pessoa muito ausente na minha vida. Meus filhos puderam contar com ele como avô. O que ele não fez por mim e pelo meu irmão, fez pelos meus filhos. Tudo o que não me deu, como atenção e dinheiro, enquanto pôde, fez por meus filhos. Quanto a sentir a ausência da minha mãe e de meu irmão, não tínhamos essa noção de família, a gente sempre viveu separado. Quando saí do colégio interno, foi pra trabalhar em casa de família. As pessoas sempre diziam pra minha mãe que eu ia estudar, que iam me dar roupas, mas nada disso aconteceu.

DV – Nessa época, você ganhava salário para trabalhar?

Fátima Andréia Nascimento – Não, eles não usavam a palavra “trabalho”, chamavam de “ajuda” em troca de casa. Diziam que iam fazer um monte de coisas, mas nunca ganhei nada nessas casas onde trabalhei. Tinha no pensamento aquela idéia de ajudar minha mãe, porque ela não tinha como pagar uma casa pra gente morar nem tinha um lugar pra onde me mandar. Eu encarava como uma missão, uma obrigação, ter que ficar em determinados locais pra ajudar minha mãe.

DV – Você saiu do colégio interno porque tinha limite de idade?

Fátima Andréia Nascimento – Não, a administração da escola mudou toda, até as freiras foram embora. Lá era muito bom, não via aquele lugar como um colégio interno, ali era a minha referência de família. As irmãs eram carinhosas, e olha que eu era uma das mais bagunceiras. Quando fazia alguma coisa errada, minha penitência era ajudar na lavanderia ou engraxar sapatos. E como gostava de cumprir penitência! As funcionárias da escola faziam todo o serviço e me deixavam brincar à vontade, era muito legal.

DV – E depois, foi passando de casa em casa?

Fátima Andréia Nascimento – No início, sim. Fiquei na primeira casa por uns seis meses, fui pra outras. Mas, depois, meu pai e minha mãe voltaram a morar juntos e alugaram uma casinha em Jardim Gramacho, onde moro até hoje. Antes disso, costumávamos passar uns fins de semana lá, na casa de umas amigas da minha mãe. Até que nos mudamos de vez. Estava com uns 13 anos. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito sozinha, fora os filhos, não tinha mais ninguém aqui no Rio.

DV – Como ficou sua vida com essa mudança?

Fátima Andréia Nascimento – Quando vi meu pai e minha mãe morando juntos, numa casinha legal, comecei a ter sonhos. Mas meu pai tinha uma visão de que os filhos não precisavam estudar, que pra ser empregada doméstica ou trabalhar em obra não precisava disso. Lá, em Caxias, tinha um curso de inglês e eu sonhava em aprender. Também queria muito ter uma guitarra. Assim, resolvi trabalhar num depósito de alumínio. Naquela área, havia vários depósitos de latinhas, de plástico, ficava um do lado do outro. Meus pais trabalhavam e eu ficava em casa sozinha. Meu irmão morava com uma família em Padre Miguel, um lugar onde cheguei a morar também antes de ir para o colégio interno.

DV – Nesse trabalho, você ganhava salário?

Fátima Andréia Nascimento – Ganhava por semana. Não ganhava como as pessoas mais velhas que faziam o mesmo trabalho que eu, de separar latinhas, alumínio. Mas ganhava um dinheirinho. Não dava pra me sustentar, mas pra quem não tinha nada, era uma fortuna. Quando recebi pela primeira vez, fui com umas colegas do trabalho, todas adolescentes, pra Duque de Caxias. Comprei uma calça quadriculada verde e preta, um tamanco laranja, nada combinava, foi muito engraçado. Depois, lanchamos, comemos hambúrguer. Minha mãe não tinha como me levar pra comer essas coisas. Gastei todo o dinheiro naquele dia. Nas outras semanas, já gastava o dinheiro antes mesmo de receber, já fazia conta.

DV – Você ficou quanto tempo nesse emprego?

Fátima Andréia Nascimento – Uns sete meses, trabalhava o dia inteiro, das 7h às 5h da tarde. Nunca mais voltei a estudar, fui só até a 3ª série. Depois, fui pra outro depósito, de plástico, de uns japoneses. Lá, pegava às 6h da manhã e largava às 8h da noite e, quando acabava, ainda tinha que lavar o galpão. Também trabalhava aos sábados, mas aí largava uma hora antes. Nesse dia, saía do trabalho, ia fazer o cabelo pra ir ao baile, mas ficava pouco tempo, às 10 horas, já estava em casa.

DV – Seus pais determinavam hora para você voltar?

Fátima Andréia Nascimento – Não, eles trabalhavam muito, eu era uma pessoa livre. Mas, às vezes, ficava na casa de uma prima, e aí, tinha que respeitar o sistema da casa dela, senão minha tia não deixaria mais a gente sair. Eu podia ir pra onde quisesse, passar dias fora de casa, sem problemas.

DV –Seu pai ficava violento quando bebia?

Fátima Andréia Nascimento – Eu preferia ficar fora de casa quando minha mãe não estava. Eu e meu pai tivemos muitos problemas, nossa relação se tornou muito difícil, era mais seguro ficar na rua mesmo. Quando a minha mãe vinha, eu ficava em casa.

DV – Qual a idade de seus pais hoje?

Fátima Andréia Nascimento – Minha mãe tem 62 anos. Meu pai morreu faz cinco anos de problemas respiratórios, porque fumava muito, bebia, trabalhava demais e se alimentava mal. Era uma mistura de tudo o que não devia fazer. Ele morreu jovem.

DV – Sua mãe ainda trabalha? Mora com você?

Fátima Andréia Nascimento – Não, ela agora está aposentada. Não mora comigo, tem outro companheiro. Quando morávamos com meu pai, um dia, quando voltei do trabalho, minha mãe não estava mais, tinha arrumado as coisas dela pra morar com esse homem. Eu tinha16 anos, fiquei muito abalada, me senti esquecida por ela. Ela não deixou nem endereço. Mesmo nunca tendo essa referência de família, minha mãe era a minha referência, era o que eu tinha, ou que eu achava que tinha. Embora eu já vivesse independente, já trabalhasse, achava que minha mãe era uma santa, que não podia dar nenhum tipo de aborrecimento a ela e que ela nunca seria capaz de ter outro namorado. E, de repente, ela foi embora. Naquela época, não a via como mulher, hoje entendo isso.

DV – Como ficou sua vida depois disso?

Fátima Andréia Nascimento – Ficou bem mais difícil, resolvi sair de casa e fui morar com um rapaz, durou uns seis meses. Meu pai sofreu muito, fiquei até com pena dele. Embora ele fizesse um monte de coisa errada, depois disso, ficou claro que ele gostava da minha mãe. Mais tarde, conheci o pai dos meus filhos, eu estava com 17 anos.

DV – Como vocês se conheceram?

Fátima Andréia Nascimento – Nos encontramos numa festa dos Alcoólatras Anônimos. Temos três filhos. Felipe tem 16 anos, é superestudioso, nunca repetiu de ano, está no segundo ano do ensino médio, é esforçado. Agora, está fazendo um curso de mecânica, fez prova e conseguiu a vaga. Alan tem 14 anos, é um pouco mais lento, é muito sonhador, vive um pouco além da realidade e isso me preocupa porque é fácil convencê-lo com qualquer história, acho perigoso. Está na 5ª série, já repetiu de ano. E tem o Patrick, com 12 anos. Ele é muito carinhoso, amigo, gosta de conversar, de fazer amizade. Na rua onde moramos, todo mundo gosta dele. Esta semana, ele estava vendendo bombinhas de festa junina com um vizinho, ganhou R$ 2 e me ofereceu pra eu comprar pão. Disse a ele que não está no momento de ele se preocupar com pão e, sim, com estudo, mas ele é muito preocupado com as questões da casa.

DV – Quantas pessoas moram na sua casa hoje?

Fátima Andréia Nascimento – Só eu e meus filhos. Não moro mais com meu marido, nos separamos em 2001. Tenho um namorado que, de vez em quando, fica lá em casa. O pai dos meus filhos é muito mais velho que eu, quando nos conhecemos, ele já tinha 35 anos. Depois que tive as crianças, ele começou a me tratar como se eu fosse mais uma filha. Aí, entrou a questão da violência e não deu mais pra segurar.

DV – Ele batia em você?

Fátima Andréia Nascimento – Sim, por um tempo, por causa da vergonha, fiquei calada, não queria que todo mundo soubesse. Mas, um dia, participei de uma palestra sobre violência doméstica e não quis mais aceitar aquilo, fiquei revoltada. Dei parte dele na delegacia, ele ficou quieto por um tempo. Depois, numa outra vez que me agrediu, pegou uma faca e cortou o fio do telefone pra eu não chamar a polícia. Tive que ficar quieta, porque com faca não se brinca. Ele fazia isso tudo, mas na frente das pessoas, se fazia de calmo. Aí eu reverti a situação, aprendi a fazer escândalo. Até ameça de morte, ele fez. Agora, estou na justiça pra receber pensão para meus filhos.

DV – Com a saída dele, ficou complicado manter a casa?

Fátima Andréia Nascimento – Quando ele foi embora, as poucas coisas de valor que tínhamos, ele levou. Quando meu pai morreu, ficamos com a TV dele, uma pequena, senão as crianças iam ficar sem. Nessa época, estava começando a trabalhar como agente comunitária e a situação ficou muito difícil. Ele ganhava mais e pagava as contas, eu só comprava algumas coisas e tinha feito contas, que não deu mais pra pagar. Larguei todas as contas, até luz. O dinheiro que ganhava só dava pra fazer o mercado. Agora, ainda estou tentando resolver isso tudo. Quando ele foi embora, não deu mais nada para as crianças.

DV – Continuou morando no mesmo lugar? Como é a sua comunidade?

Fátima Andréia Nascimento – Sim, moro na Rua Remanso, no Jardim Gramacho. Lá tem três escolas boas, mas as municipais são melhores porque dão uniforme, calçado, material didático, mochila e alimentação também é boa. Agora, todos os três estão na escola estadual.

DV – A saúde de seus filhos é boa?

Fátima Andréia Nascimento – Todos tiveram problemas alérgicos. Quase todo mundo que mora em Jardim Gramacho tem esse problema, principalmente de manhã. A garganta e os ouvidos ressecam e coçam muito. É por causa da poluição ambiental, é muita queimação de cobre, de noite fica só fumaça ali. Mas temos tratado isso no posto.

DV – Como é a alimentação de vocês?

Fátima Andréia Nascimento – Não gosto muito de carne vermelha, acho que faz mal pra saúde, é algo pra comer só no fim de semana. Mas eles comem de tudo, gostam muito de café com leite, achocolatado, pão, iogurte, porque não compro com freqüência. Eles gostam muito de maçã, beterraba, cenoura, batata-doce que faço com carne moída. Comem também arroz, feijão, frango, legumes. Um de meu filhos come na escola e em casa, os outros não gostam da comida da escola, só servem angu com salsicha. Eles gostam também de besteiras, como bolo, biscoito recheado, mas não gosto de comprar essas coisas, é uma briga danada. Lá em casa, não sobra muita comida, acaba tudo rapidinho. Tudo o que coloco na geladeira, eles comem. Só as coisa cruas, como abóbora, couve, que eles não sabem fazer ainda, ficam na geladeira até eu fazer.

DV – Quanto você gasta com compras?

Fátima Andréia Nascimento – Hoje, ganho R$ 450 trabalhando como agente comunitária de saúde. Trabalho com isso há sete anos. Gasto uns R$ 350 só com comida, faço as compras de mês e, quando vai acabando, vou comprando aos poucos. As compras agora estão mais caras, os preços subiram muito. Antes, comprava uma quantidade maior, agora não dá mais pra fazer isso. Por exemplo, se comprar muito ovo, toda hora é um ovo mexidinho; se comprar muito hambúrguer, é a mesma coisa. Então, compro menos agora. Compro uns dez quilos de arroz por mês porque, além de comer na comida, eles pedem para eu fazer arroz doce. Mas estou tentando diminuir o açúcar por uma questão de saúde mesmo. Já a carne, compro cerca de dois quilos por semana e divido cada quilo para dois, três dias. Costumo comprar hambúrguer, carne moída, frango, salsicha e aproveito as promoções do mercado.

DV – E os outros gastos com vestuário, material escolar? Como você administra esse orçamento?

Fátima Andréia Nascimento – Compro roupas pra eles só em promoção mesmo. O mais velho tem mais cuidado com as roupas, os menores ainda gostam de tomar banho de mangue e a roupa fica encardida, manchada. Eu brigo, mas entendo, porque também gostava de tomar banho de mangue. Eles acabam com a roupa muito rápido. Cada mês, compro uma coisa, cuecas, camisetas, shorts. Já o sapato, que é mais caro, costumo comprar quando recebo o décimo-terceiro, no fim do ano, ou quando recebo o PIS.

1 Assista também ao vídeo com a entrevistada, disponível no Portal do Ibase www.ibase.br.

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