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diálogos, propuestas, historias para una Ciudadanía Mundial

O conceito de cidade de classe mundial e suas repercussões no planejamento urbano para as cidades da região da Ásia-Pacífico

Ari HASAN

2009

Os conteúdos deste documento surgem das minhas experiências pessoais de trabalho ou vínculos com programas e projetos em uma série de cidades asiáticas (1) durante os últimos 25 anos, assim como com seus urbanistas, acadêmicos, estudantes, políticos e representantes de organizações da sociedade civil. Muitos destes programas e projetos receberam o apoio de Instituições Financeiras Internacionais (IFI) e agências bilaterais de desenvolvimento, sendo que a maioria das referências do documento provém de autores que conheço pessoalmente.

Introdução

O modelo de estado de bem-estar da Europa nasceu de uma incômoda reconciliação entre o capitalismo e seus adversários. Seus princípios foram adotados pela maioria dos países que recentemente se tornaram independentes (que não pertenciam ao bloco soviético) no período posterior à Segunda Guerra Mundial. O ethos do modelo sobreviveu graças à divisão do mundo entre entidades socialistas e capitalistas, além da presença de uma China revolucionária e de uma União Soviética com grande poderio militar no Conselho de Segurança da ONU. Nestas circunstâncias, uma economia de mercado global simplesmente não era possível. O colapso da União Soviética e as repercussões do fracasso da Revolução Cultural na China modificaram todo este contexto e, em termos políticos, o capitalismo chegou a dominar o mundo.

Como resultado, hoje em dia somos governados por três instituições globais. Elas determinam a política, a cultura, as finanças e o desenvolvimento mundial e, do mesmo modo, também a maior parte das políticas e dos conceitos de desenvolvimento a nível nacional. Nenhuma destas instituições é democrática por natureza e, portanto, suas decisões e políticas não podem ser modificadas por meio de normas, regulamentos e procedimentos existentes que determinem seu funcionamento. Tais instituições são: em primeiro lugar, a ONU, controlada por cinco membros do Conselho de Segurança que ganharam a Segunda Guerra Mundial e podem vetar individualmente qualquer decisão da Assembléia Geral; em segundo lugar, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que funcionam sob o conceito do dólar, um voto; e, em terceiro lugar, a Organização Internacional de Comércio (OMC), fruto das negociações da Sala Verde do G-7, as quais deram lugar à criação do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT, na sigla em inglês), e é controlada pelo G-8.

Conjuntamente, estas organizações promoveram o que se conhece como economia de “livre mercado”, cujo aspecto mais importante é a liberdade de circulação do capital através das fronteiras nacionais e a busca de investimentos que, sempre que possível, possam ser multiplicados. O processo de ajuste estrutural, ao qual muitos países mais pobres foram obrigados a se submeter na década de 90, facilitou o crescimento da economia de livre mercado e o apoio a tal processo. O ajuste estrutural exigiu que os governos nacionais regulassem suas balanças comerciais e devolução de créditos outorgados pelas IFI. Para que isso fosse possível, os países que se submetiam ao ajuste estrutural acordaram eliminar subsídios para a saúde, educação e moradia; aumentar impostos aos serviços públicos; vender seus ativos industriais e imóveis do setor corporativo privado, nacional ou internacional e eliminar restrições sobre importações e exportações. A conseguinte crise econômica a nível nacional significou que os países mais pobres não podiam investir e, em muitos casos, nem sequer subsidiar, projetos de infraestrutura que deveriam ter sido construídos pelo setor corporativo nacional ou internacional por meio de licitações internacionais. Como resultado, produziu-se um grande boom das empresas internacionais para a execução destes projetos. Os processos de Construção-Operação-Transferência (COT) e Construção-Operação-Propriedade (COP) foram inventados para possibilitar o desenvolvimento da infraestrutura por meio desse sistema. Ambos os sistemas geram infraestrutura com custo duplicado em relação a que seria produzida pelo governo. Além disso, os governos são obrigados a outorgar garantias soberanas pelo capital aportado pelos investidores.

Desenvolveu-se então uma terminologia e conceitos totalmente novos para respaldar a economia de mercado. Conceitos como “o negócio não é negócio do estado”, “as cidades são os motores do crescimento”, além da vinculação do bem-estar econômico com o crescimento do PIB, gerando um impacto notável nas políticas nacionais dos países asiáticos. Na busca pelo crescimento e pelo Investimento Estrangeiro Direto (IED), esses países investiram consideravelmente na criação de zonas industriais (ao invés de investir em sua própria população) e aceitaram o conceito de agricultura “corporativa”. A Índia é um dos gigantes econômicos emergentes que seguiu essas políticas desde meados dos anos 90. Por esta razão seu crescimento econômico na última década tem variado entre 7% e 9%. Contudo, estima-se que devido à criação de 500 Zonas Econômicas Especiais para atrair o IED e a agricultura corporativa – ambas promovidas pelo Banco Mundial na busca pelo crescimento do PIB – cerca de 400 milhões de pessoas se viram forçadas, voluntariamente ou não, a se transladarem das zonas rurais para as urbanas, a partir desse momento até 2015 (2). Isso representa o dobro da população do Reino Unido, França e Alemanha juntas. Esse processo também está sendo promovido – ao qual, em muitos casos, os agricultores têm resistido – em outros países asiáticos (3). Os cultivos alimentícios estão sendo substituídos por cultivos industriais, sendo que este processo, que incrementa o custo e a escassez de alimentos, gera consequentemente refugiados agrícolas – retorno do estado vulnerável diante das pressões e interesses do setor corporativo (4).

Para promover o IED, a ONU, o FMI e a OMC também se promoveu a descentralização dos sistemas de governança, outorgando um poder considerável às instituições locais. Este poder está cada vez mais sendo usado para acessar o IED e para identificar projetos independentemente do governo local ou central.

Por outro lado, as reformas políticas e a desregulamentação influenciada pelas IFI tiveram um impacto enorme nos mercados de propriedades e reestruturaram as políticas de desenvolvimento urbanístico. O tráfico internacional de ouro e de artigos de contrabando deixou de ser lucrativo. Por este motivo as gangues e máfias implicadas nestas atividades de quadrilhas se envolveram no negócio de bens imobiliários e se vincularam, com este objetivo, aos seus sócios e colegas do submundo estrangeiro. O fato desequilibrou o mercado da terra e impulsionou uma especulação massiva (5). O processo foi ainda mais facilitado pelos conflitos regionais, pela crescente permeabilidade das fronteiras (tanto para o capital como para as pessoas) e pelo tráfico de drogas. Todo o processo introduziu o elemento da violência, dos assassinatos e seqüestros dos oponentes, rivais e ativistas sociais específicos do setor da terra e dos bem imóveis (6).

Em quase todos os casos, o estado respondeu a estas pressões do mercado, colocando a terra à disposição do desenvolvimento por meio de conversões do uso do solo, de novos planos de urbanização e da demolição de assentamentos informais (7). Além de suas próprias debilidades e cultura organizacionais, as organizações da sociedade civil que questionaram este processo enfrentaram duas limitações; a falta de empatia dos meios de comunicação internacionais e a ausência de leis que previssem as conversões meio-ambientais e sociais inadequadas do solo. Mesmo onde as leis existem, as mesmas frequentemente carecem de normas, regulamentos e procedimentos e de instituições que as implementem. Como resultado, os tribunais costumam gerar falhas que promovem a desigualdade, a pobreza e a fragmentação social (8).

A pobreza aumentou nos países que não contavam com meios para responder de maneira positiva ao livre mercado e a desigualdade entre ricos e pobres incrementou-se em todos os casos. Para retificar essa crescente desigualdade, as IFI promoveram o conceito de redes de segurança para os pobres, através das quais lhes concediam créditos, estimulando o papel das ONGs nestes programas.

As redes de proteção atendem a uma porcentagem bastante baixa da população afetada e a participação das ONGs com fundos importantes à disposição está provocando um efeito adverso na cultura, na relação das organizações com as políticas de urbanização e nas comunidades pobres (9). Os empréstimos para projetos de infraestrutura também aumentaram, especialmente para a construção de estradas. O questionamento cresce acerca destes empréstimos, dos programas de ajuda e dos projetos promovidos pelas organizações da sociedade civil no Sul (10). Existem provas que demonstram que, em sua maioria, os projetos são custosos e não sustentáveis, sendo que uma grande parte (às vezes a maior parte) dos créditos é revertida para o norte sob a forma de assistência técnica, gastos gerais e benefícios para os contratados promovidos pelo conceito de licitações internacionais (11).

Os aspectos detalhados tiveram um impacto profundo na conformação e nas políticas de nossas cidades. As configurações que modificam nossas urbes e os motivos por trás delas são o resultado de um poderoso nexo de urbanistas e investidores (muitos deles de origem duvidosa); instituições governamentais, burocratas e políticos corruptos que buscam o capital internacional para forjar para suas cidades a imagem do “Ocidente”; uma imagem promovida (implícita ou explicitamente) pela ONU, FMI e OMC. Para promover este paradigma, que chamo de “paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano”, também se promoveu o conceito de cidade de classe mundial ou cidade global. Trata-se de um conceito poderoso e quase universalmente aceito pelas autoridades políticas dos governos nacionais, as novas classes médias emergentes e a academia, em especial no Ocidente.

O conceito de cidade global e suas repercussões

Karachi, Bombay, Cidade Ho Chi Mnh, Seul e Delhi são todas urbes que aspiram transformar-se em cidades globais. Algumas aspiram ser com Xangai e outras como Dubai. A cidade global tem sido maravilhosamente (e favoravelmente) definida num brilhante artigo de Mehbubur Rahman e em outros materiais (12). Segundo a agenda da cidade global, a cidade deve contar com arquitetura icônica por meio da qual deveria ser reconhecida, tal como o edifício mais alto ou a maior fonte do mundo. Deve estar equipada para ser a sede de um megaevento internacional como os Jogos Olímpicos e o Mundial da FIFA. Deve contar com apartamentos em arranha-céus, em oposição a assentamentos melhorados e bairros de baixa altura. Para resolver seu crescente problema de tráfego (resultado dos créditos bancários para a compra de veículos) deve construir passagens em desnível, subterrâneas e autopistas em vez de restringir a produção e a compra de automóveis, além de gerenciar o tráfego com maior eficiência. Para atingir todos os requisitos, uma cidade deveria contar com um avultado orçamento, para o qual deveria buscar o IED e o apoio das IFI. Para acessar o IED, deve ser desenvolvida uma infraestrutura propícia para os investimentos e uma imagem de cidade global. Para estabelecer tal imagem, as populações pobres são removidas da cidade para a periferia e os regulamentos, que já são contrários aos pobres (antivida de rua, antipedestres, antiuso misto do solo e antiespaço dissolvido), tornam-se ainda mais hostis ao permitir conversões do uso do solo que são nefastas meio-ambientalmente e socialmente. A repercussão mais importante desta agenda consiste em que a capital global determine cada vez mais a conformação física e social da cidade. Como parte deste processo, os projetos substituíram o planejamento e o uso do solo é agora exclusivamente determinado pelo valor da terra, sem tomar como base considerações sociais e meio-ambientais. O solo converteu-se descaradamente numa mercadoria.

A agenda que opta pela reestruturação urbana com edifícios de altura ao invés da melhoria dos assentamentos, pela realocação dos antigos assentamentos informais para a periferia da cidade e para ceder lugar a mega-projetos e megaeventos, tem resultado num aumento enorme das expulsões em toda a Ásia durante os últimos cinco anos. Mais de 500 mil pessoas foram desalojadas em Delhi em função da preparação dos Jogos Asiáticos de 2010. (13)  (14) Todos os estudos demonstram que as pessoas afetadas não foram consultadas antes da desocupação, que foram submetidas a uma sutil coação e, frequentemente, à força bruta, sendo que ficaram ainda mais empobrecidas ou contraíram novas dívidas no processo de despejo e/ou de realocação (15). Entre os outros efeitos gerados por tais despejos estão a interrupção da escolaridade das crianças, a perda de empregos e, para alguns, o incremento de 5 a 6 horas destinadas para o trajeto casa-trabalho, trabalho-casa, o que acaba afetando a vida familiar e social, a saúde, a recreação e as atividades de lazer (16). Os resultados das políticas mencionadas, junto à ausência de subsídios para a urbanização e à habitação social, produziram um incremento impressionante dos assentamentos informais.

Os políticos e urbanistas do governo justificam o enfoque na reestruturação urbana de edifícios de altura insistindo que a cidade moderna deve ser configurada com este tipo de construções, com espaços abertos intermediários. Também insistem que a alta densidade da população, necessária para o bom funcionamento da cidade, não pode ser atingida com a melhoria das estruturas existentes nem o aumento de pessoas nos bairros que já existem. A imagem de uma cidade é governada pela percepção do que deveria ser. Contudo, um estudo recente sobre os assentamentos e complexos de apartamentos de Karachi demonstrou de maneira conclusiva que a mesma densidade recomendada pela Karachi Building Control Authority – KBCA (Autoridade de Controle da Construção de Karachi) pode ser conseguida com a construção de casas geminadas com térreo mais dois andares (com infraestrutura conjunta necessária). Estas podem ser executadas sem causar dano ao meio-ambiente nem afetar negativamente a vida social (17)  (18).

O estudo de um projeto de reassentamento e melhorias na Cidade Ho Chi Minh (considerado como um dos melhores) ilustra os problemas originários da opção pela construção em altura ao invés da melhoria do existente. No caso deste projeto, a compensação intermediária entregue pelo estado aos habitantes dos apartamentos ficava em torno de US$5.400, quantia que não inclui o crédito necessário para cobrir a diferença entre a compensação e o preço real da habitação.Tampouco cobre o custo da infraestrutura externa. A opção dos apartamentos, considerando a economia do Vietnã, não é sustentável sem empréstimos importantes provenientes das IFI. A opção de melhoria dos assentamentos, por outro lado, tem um custo de US$ 325 por domicílio, sendo possível gerenciála. As comunidades também preferem a opção de melhoria porque não podem desempenhar atividades econômicas em edifícios de apartamentos. Das setenta e duas famílias que tiveram que se mudar para os apartamentos como parte do projeto, cinquenta ficaram endividadas em função da mudança, sendo que nenhuma possuía dívidas anteriores.

A cidade global não abre espaço para atividades comerciais informais nem ambulantes, exceto se estão organizadas como atrações turísticas. A relação entre estes vendedores/comerciantes ambulantes, as pessoas de baixa renda (aos quais facilitam a vida por se apresentarem acessíveis) e os que gastam horas diariamente com transporte para poder trabalhar não podem ser reconhecidas. Porém, uma vez que já foram concretizados despejos em grande escala, em todas as grandes cidades da região da Ásia-Pacífico, dos trabalhadores informais e vendedores ambulantes sem, no entanto, oferecer-lhes compensação, milhões de famílias se empobreceram (19).

Graças aos milhares de milhões de dólares em créditos bancários, houve um incremento na compra de veículos de 80 a 100% em muitas mega-cidades e cidades intermediárias da Ásia durante a última década. Somente em Karachi, os bancos e as empresas de leasing outorgaram o equivalente a US $1,8 bilhão de dólares para a compra diária de, em média, 506 automóveis durante o ano fiscal de 2006-2007 (20). É inútil dizer que o tráfego das maiores cidades da região converteuse num pesadelo. Para resolver este problema, os urbanistas iniciaram um enorme programa de construção de estradas, passagens em nível, subterrâneos e autopistas sim sinalização, o que agravou a situação, além de dificultar a vida dos pedestres e dos que se locomovem diariamente para trabalhar. Junto a estes projetos viários, os meios de transporte não motorizados, geralmente usados pelos pobres (triciclos e “rickshaws” com tração humana, carruagens com tração animal etc.), foram proibidos em muitas urbes, ou restringidos a periferia ou às zonas de baixa renda (21). Entretanto, os projetos de linhas férreas rápidas para o transporte de massa não conseguiu proporcionar uma alternativa adequada ou acessível para os pobres, pois se tratam, essencialmente, de iniciativas isoladas que não formam parte de um plano de transporte integral maior.

Em função dos processos descritos e de outros relacionados, muitas cidades asiáticas se tornaram hostis aos pobres, assim como para os migrantes (principalmente refugiados agrícolas) e para as comunidades que as habitam por décadas, ou mesmo séculos. Os custos do solo, da construção e do aluguel aumentaram muito mais do que qualquer incremento dos salários diários para os trabalhadores sem qualificações.

A luta contra os aspectos negativos da cidade global

Não conheço cidade ou país algum da região da Ásia-Pacífico onde se tenha questionado o paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano ou onde se tenha promovido uma visão alternativa para a cidade. Não obstante, existem projetos formulados sob este paradigma que foram questionados com êxito em países onde existe uma cultura política populista, além de organizações da sociedade civil e redes sólidas.

Como já se mencionou, a capital global tem buscado desesperadamente um lar. Os projetos imobiliários para os novos ricos e para o turismo oferecem as melhores oportunidades de investimento, especialmente naqueles países onde os marcos regulatórios são débeis. Os centros turísticos e condomínios ao longo das praias nas cidades asiáticas representam a localização perfeita para esses projetos. Os assentamentos informais urbanos proporcionam lucros atrativos para os centros comerciais, desde que os habitantes sejam desalojados. Os governos nacionais e urbanos recentemente legitimados têm vendido ou acordado, entre 2006 e 2008, vender clandestinamente estes ativos às empresas nacionais e/ou investidores estrangeiros – incluindo sete ilhas próximas da costa e um grande número de praias –, além da demolição dos lares dos antigos habitantes (22). Como resultado, em 2007, houve o incremento do IED que chegou a superar 1500% em comparação com os quatro anos anteriores. Este investimento empobreceu ainda mais os que já eram pobres, além de deixá-los sem emprego e sem casa. A situação beneficiou apenas os investidores, seus sócios locais e os políticos (23). O Camboja é um país pobre que ainda está em recuperação pelos anos de devastação, genocídio e guerra. Por este motivo, o movimento da sociedade civil é quase inexistente, o que possibilita esta venda clandestina com escassa ou nula resistência organizada.

O Paquistão também é um país pobre, mas em comparação, conta com uma sociedade civil sólida com leis meio-ambientais e trabalhistas incipientes, além de uma cultura política populista surgida das repetidas lutas pela restauração da democracia. Em 2007, o Primeiro Ministro paquistanês acordou vender duas ilhas próximas à costa de Karachi para uma empresa com sede em Dubai, contra um investimento de US$ 43 bilhões. Além disso, aceitou prover cerca de 33 mil hectares litorâneos para Limitless, outra empresa com sede em Dubai, para um projeto de US$500 bilhões, cujo investimento inicial soma US $150 bilhões. Ao aceitar esta venda, o Primeiro Ministro esquivou-se das leis e procedimentos jurídicos existentes. Agregado ao fato, avaliou-se que os projetos (exclusivamente para condomínios de luxo, hotéis 5 estrelas e marinas) teriam um impacto negativo na subsistência de 200 mil pescadores, desalojando os habitantes de cerca de 36 comunidades e impediriam o acesso a praia dos grupos de baixa e média renda. Os projetos de urbanização das praias também tentaram impedir seu acesso aos grupos de baixa renda, proibindo locais informais de venda e consumo de alimentos nas mesmas, substituindo-os por pátios formais de comida cara (24).

As organizações da sociedade civil de Karachi criaram uma rede para se opor aos projetos de reconversão das praias e venda das ilhas. Tal rede contava com organizações de pescadores, escolas, ONGs, organizações comunitárias em assentamentos de baixa renda, meio acadêmico, autoridades destacadas (como ex-juízes da Suprema Corte) e meios de comunicação impressos. O resultado foi a suspensão da venda das ilhas e cancelamento do projeto Limitless. Anteriormente, por meio do mesmo processo, redes respaldadas por organizações que trabalham com grupos de baixa renda se opuseram ao Projeto de Transporte de Massa de Karachi, de 1994, o que resultou na sua modificação (25). Também se cancelou um crédito de US$ 100 milhões outorgado pelo Asian Development Bank – ADB (Banco Asiático de Desenvolvimento) para um projeto de tratamento de esgoto, quando uma ONG que trabalhava com comunidades de assentamentos informais apresentou uma alternativa de US$ 20 milhões e fez o lobby por meio de uma rede (26). Os organismos profissionais, representantes de arquitetos e urbanistas se destacaram por sua ausência nestes processos, mesmo quando alguns arquitetos participavam dos movimentos a título pessoal.

Em Bombay aconteceu um processo similar ao de Karachi. O governo do estado de Maharastra – cuja capital é Bombay –, publicou um anúncio chamando aos “interessados” para a reurbanização de Dharavi, assentamento informal dentro da cidade. A proposta contemplava um estudo do assentamento, o exercício do desenho urbano e o reassentamento da população removida e/ou entrega de moradias. Dharavi conta com uma população de meio milhão de pessoas, sendo que suas atividades comerciais e industriais informais abastecem ao mercado formal e geram renda equivalente a muito mais do que US$ 500 milhões anuais. Apesar disso, o aviso denominava Dharavi como um negócio e perguntava ao investidor se a perspectiva “o emocionava”  (27) . Os habitantes e negócios de Dharavi não foram sequer consultados ou notificados do aviso. Além disso, para um empreendimento de tal envergadura, era necessário um Estudo de Impacto Meio-Ambiental de acordo com a legislação indiana, que do mesmo modo não foi feito. Mais grave ainda foi a solicitação ao urbanista de um estudo do assentamento, quando já existiam diferenças notáveis entre os estudos sobre Dharavi realizado pelo governo e os de ONGs (28).

Para se opor ao plano do governo, formou-se especialmente uma rede composta da National Dwellers Federation – NSDF (Federação Nacional de Residentes de Assentamentos Informais), uma organização nacional de 500 mil lares – , ONGs que trabalham com grupos de baixa renda, tal como

Society for the Promotion of Area Resource Centres – SPARC (Sociedade para a Promoção de Recursos por Área), cidadãos afetados e organizações interessadas. Acadêmicos, artistas, pesquisadores e ONGs internacionais também expressaram sua preocupação. Entretanto, o Presidente da NSDF ofereceu sua associação com o governo estatal para o desenvolvimento de Dharavi, ameaçando provocar perturbações caso o plano do governo fosse aplicado. Graças a este movimento foram empreendidas negociações e Mashal, uma ONG, ganhou o mandado de realizar um estudo de Dharavi com o apoio de NSDF e SPARC (29).

Todos os movimentos exitosos que estão contra tais projetos insensíveis têm uma série de pontos em comum. Primeiro, a existência de uma grande rede ou organização de comunidades pobres; segundo, a presença de organizações que apóiam estas comunidades com informação e liderança administrativa e técnica sem, no entanto, controlá-las e dirigi-las; terceiro, a pesquisa sobre questões sociais, técnicas e de planejamento que questione o projeto de maneira informal e apresente alternativas; quarto, o apoio dos cidadãos preocupados e destacados, de organismos profissionais, de acadêmicos e dos meios de comunicação; e quinto, o fato de que os êxitos ou a rede não pertencem somente a um grupo. Outro aspecto que surgiu de uma série de estudos de caso consiste em que, lamentavelmente, a violência ou ameaça constituem a única forma de dissidência reconhecida e admitida pelos círculos oficiais (30).

Ao lúgubre panorama descrito, deve-se agregar a esperança. Para tanto, serve o exemplo de Bann Mankong Collective Housing Program (Programa Coletivo de Moradia Bann Mankong), um projeto nacional de melhoria de assentamentos precários criado pelo governo tailandês em 2003 e implementado por Community Organizations Developments Institute – CODI (Instituto para o Desenvolvimento de Organizações Comunitárias). No contexto do projeto, as comunidades, organizadas por meio de um processo de programas de poupança e crédito, identificam e adquirem terras para a construção ou melhoria das moradias através de um sistema de subsídios e créditos governamentais com fundos rotativos. Para impedir a especulação, adotou-se uma estratégia de propriedade coletiva ao invés de individual. Os governos locais, profissionais, universidades e ONGs estão comprometidas com as comunidades pobres do programa do CODI. Entre janeiro de 2003 e março de 2008, mais de 53976 lares de 226 cidades da Tailândia haviam sido beneficiados pelo programa (31).

Uma alternativa para o conceito de cidade global?

Qual é a alternativa ao conceito de cidade global? Uma cidade inclusiva, aberta aos pedestres e acolhedora aos que passam horas no trânsito todos os dias, que se baseia nos princípios de justiça e igualdade? Que processos permitem desenvolver uma visão para tal alternativa e como pode ser promovido? Esta alternativa poderia nascer dos processos que questionam (com e sem êxito) os projetos impulsionados pelo paradigma neoliberal de desenvolvimento urbano? Talvez devamos debatê-los, mas o que deveríamos fazer nesse ínterim?

No caso de Karachi, parece-me que os projetos substituíram o planejamento num futuro imediato. Fiz a tentativa de promover alguns princípios com base nos quais os projetos deveriam ser avaliados e/ou modificados. Estes não deveriam causar dano à ecologia da região onde se localiza a cidade e, como prioridade, deveriam ir de encontro aos interesses da maioria dos habitantes que são, no caso das nossas cidades, os grupos de baixa e média renda. Os projetos deveriam determinar o uso do solo segundo considerações sociais e meio-ambientais e não somente pelo valor dos terrenos. Finalmente, deveria proteger o patrimônio cultural tangível e intangível das comunidades. Contudo, sem cuidado e respeito pelo entorno natural e pelas pessoas que conformam a maior parte dos habitantes das urbes, tais princípios não podem ser seguidos com eficácia.

A pergunta continua sendo se a megalomania e o oportunismo dos políticos e dos urbanistas aceitarão um paradigma novo e mais humano, que restrinja seus rendimentos e desmercantilize a terra. É duvidoso, a menos que sintam a pressão das redes por toda a cidade, armadas com pesquisas e visões alternativas. A chave para provocar a mudança jaz na natureza da educação profissional. Frequentemente penso que poderia ser útil que arquitetos, urbanistas e engenheiros que se formam prestem um juramento semelhante ao dos médicos e, no caso de que não respeitem suas promessas, seus nomes sejam eliminados da lista profissional. Em 1983, depois de avaliar o dano meio-ambiental que parte do meu trabalho havia causado, prometi num artigo que:

Não realizarei projetos que danifiquem irreparavelmente a ecologia e o meioambiente da área onde se situam; não realizarei projetos que empobreçam, removam pessoas e destruam o patrimônio cultural tangível e intangível das comunidades que vivem na cidade; não realizarei projetos que destruam o espaço público onde se reúnem pessoas de diferentes classes sociais e que violem as ordenanças municipais acerca dos edifícios e normas de zoneamento; e sempre me oporei aos projetos insensíveis que incorram no que foi anteriormente dito, sempre que possa oferecer alternativas viáveis (32). Tenho tentado cumprir aquela promessa e acredito que estou conseguindo.

1 Artigo redigido para o Simpósio sobre Cultura, Espaço e Revitalização da Rede IAPS-CSBE (International Association People Environment Studies- Culture and Space in the Built Environment Network), Istambul, Turquia, 12 – 16 Outubro 2009
2 Devinder Sharma; Displacing Farmers: India Will have 400 Million Agricultural Refugees; www.dsharma.org
3 Para mais detalhes, ver, Ahmed Rafay Alam; Leasing Out Land And Food Security; The Daily News, Karachi, 04 Setembro 2009.
4 Devinder Sharma; op. Cit.
5 Liza Weinstein; Mumbai’s Development Mafias: Globalization, Organized Crime and Land Development; International Journal of Urban and Regional Research, Volume 32.1, Marzo2008
6 Ibid. Outros urbanistas de diferentes países asiáticos também comentaram com o autor sua preocupação a respeito.
7 Arif Hasan: Understanding Karachi: Planning and Reform for the Future; City Press, Karachi 2000
8 Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily Dawn, Karachi, 14 Mayo 2008
9 Arif Hasan: Documento de debate para el seminario de la UN University “Sustainable Urban Future in an Era of Globalisation and Environmental Change”; New York, 09-10 Julio, 2007
10 Entre elas se encontram o Tribunal Independente dos Povos sobre o Banco Mundial na Índia, a Voz do Povo em Karachi e o Instituto de Recursos para o Desenvolvimento no Camboja.
11 Ver Stephanie Gorson Fried e Shannom Lawrence com Regina Gregory: The Asian Development Bank: In its own Worlds; “An Analysis of Project Audit Reports for Indonesia, Pakistan and Sri Lanka; ADB Watch, Julho 2003. Também, de Arif Hasan; The Neo Urban Development Paradigm and the Changing Landscape of Asian Cities; International Society of City and Regional Planners Review No. 3, La Haye, 4 Junho 2007.
12 Mahbubur Rahman; “Global City – Asian Aspirations; artigo lido durante o seminário sobre “Urbanismo num mundo globalizante” Universidade NED de Karachi - Departamento de Arquitetura e Planejamento, 30 Maio 2009
13 Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily Dawn, Karachi, 14 Maio, 2008
14 Nota das editoras: referências aos impactos negativos do recondicionamento da cidade para os mega-eventos esportivos, ver na mesma publicação outro artigo “Jogos Olímpicos de Pequim 2008: As atividades de modernização e embelezamento removem alguns habitantes para a periferia de Pequim, enquanto outros resistem e reclamam seu direito à cidade”, María Cristna Harris.
15 Para mais detalhes ver Tripti Lahiri; A Nightmare Grows on Ruins of India’s Housing Shortage; Daily Dawn, Karachi, 14 Maio 2008 e Han Verschure, Arif Hasan e Somsook Boonyabancha; Evaluation & Recommendations for Infrastructure & Resettlement Pilot Project Tan Hoa-Lo Gom Canal; Cidade de Ho Chi Minh, 28 de Abril de 2006
16 Arif Hasan; Livelihood Substitution: The Case of the Lyari Expressway; Ushba International Publishing, Karachi, 2006.
17 Estudo realizado pelo Instituto Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED) e respaldado pela Unidade de Pesquisa e Desenho Urbano do Departamento de Arquitetura e Planejamento (DAP), Universidade NED, Karachi.
18 Arif Hasan. Asiya Sadiq, Suneela Ahmed; Density Study of Low and Lower Middle Income Settlements in Karachi; estudo ainda não publicado preparado para IIED, Reino Unido, 22 de Junho de 2009
19 Para mais detalhes, ver Arif Hasan, Asiya Sadiq Polak, Christophe Polak; The Hawkers of Saddar Bazaar; Ushba International Publishing, Karachi, 2008 y Bhowmik, S.; Social Security for Street Vendors: A Symposium on Extending Social Security to Unprotected Workers; Volume 568, Diciembre 2006 (citado en Liza Weinstein; Mumbai’s Development Mafias: Globalization, Organized Crime andLand Development; International Journal of Urban and Regional Research, Volume 32.1, Março2008)
20 Arif Hasan; The Neo Urban Development Paradigm and the Changing Landscape of Asian Cities; International Society of City and Regional Planners Review No. 3, La Haye, 4 Junio 2007
21 Madhu Gurung; Delhi’s Graveyard of Rickshaws; InfoChange News & Features, Septiembre 2006
22 Ardian Levy y Cathy Scott-Clark; Country for Sale; The Guardian, 26 Abril 2008
23 Cambodia Development Resource Institute Technical Assistance and Capacity Development in an Aid-Dependent Economy; Working Paper 15, Año 2000; Tom Coghlan; Consultants Reap Wealth from Afghan Chaos; Daily Telegraph, 26 Marzo 2008
24 Ver “The Partitioning of Clifton Beach” in Arif Hasan; Planning and Development Options for Karachi; Sheher Saaz, Islamabad, 2009. Ver también, sitio web de Fisherfolk Forum www.pff.org.pk
25 Site de Urban Resource Centre: www.urckarachi.org
26 Site de Orangi Pilot Project: www.oppinstitutions.org
27 Site de Society Promotion for Area Resource Centres (SPARC): www.sparcindia.org
28 Sheela Patel and Jockin Arputham; Plans for Dharavi: Negotiating a Reconciliation Between a State-Driven Market Redevelopment and Residents’ Aspiration; Environment & Urbanization, Volume 20(1), 2008
29 Ibid
30 Isso foi observado pelo autor em pelo menos três casos em Karachi, e na luta dos arrendatários agrícolas do Punjab. Também foi assinalado ao autor por Sheela Patel de SPARC em Bombay e pelo Prof. Yves Cabannes em casos da América Latina.
31 Ver site de CODI: www.codi.or.th
32 Arif Hasan; No to Socially and Environmentally Development Projects; The Review 1983

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