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Soja e escravidão

Luc Vankrunkelsven

07 / 2004

Os portugueses eram, primariamente, piratas que queriam dominar os sete mares, lutando contra os holandeses, franceses, espanhóis e ingleses. Desde que aportaram no Brasil, em 1500, eles consideravam o Oceano Atlântico como seu ‘Mare Nostrum’. Assim como os romanos, 1500 anos antes, viam o Mar Mediterrâneo como sendo ‘seu’ território.

Mesmo que o foco dos portugueses fosse o mar, logo eles começaram o ciclo econômico de saque da terra ‘descoberta’. No início do século XVI, na costa, tudo girava em torno do ‘pau brasil’. Esta madeira vermelha mudou o nome deste imenso país em Brasil. É que devido à união da cruz e da espada, eles haviam batizado a terra, inicialmente, de ‘Terra da Santa Cruz’. Depois de terem derrubado praticamente toda a madeira, foram feitos, no Nordeste, grandes plantações de cana-de-açúcar. Em 1698, foi descoberto ouro em Ouro Preto, Minas Gerais: terceiro ciclo. No século XIX, foi o café. Este novo ouro transformou, em curto espaço de tempo, a pequena vila de São Paulo em uma megalópole no sudeste do Brasil. Atualmente moram 18 milhões de pessoas nesta cidade industrial com ares europeus, mas a febre de um novo ciclo se desenrola alhures. Nas plantações de soja no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Bahia, Maranhão, Pará, Tocantins, Goiás. Lá domina, agora, o ‘Ouro Verde’  (1).

E o que estes ciclos têm em comum?

O fato de que é possível ganhar muito dinheiro em curto espaço de tempo e que são escravos que fazem o trabalho. Como assim, escravos?!? Não em 2004, nas plantações de soja, não é?

Espere um pouco. Primeiro fizeram os índios trabalhar, mas eles morriam feito moscas. Eles não resistiram ao trabalho escravo e às doenças trazidas pelos europeus. Logo surgiu, no século XVI, um triângulo: Brasil-Portugal-África Ocidental. Os portugueses compravam africanos dos traficantes de escravos islâmicos. Às vezes resolviam eles próprios a atividade em suas colônias no outro lado do ‘Mare Nostrum’: em Angola e Moçambique. Os holandeses e os ingleses também não deixaram de participar do tráfico de escravos. As cifras relativas às deportações que ocorreram durante estes séculos variam muito. O historiador Curton relata três leques, cada um representando 3 milhões de escravos que foram acorrentados nos porões dos navios e levados para o Brasil, Caribe e Flórida. Cerca de metade destes chegava vivo. Da América Latina fluíam açúcar, ouro, prata, estanho, cacau e café na direção da Europa. Via Portugal, muitas matérias-primas iam para a Grã-Bretanha (pense na carruagem dourada da rainha!). É que, desde 1700, os britânicos haviam conseguido tornar Portugal dependente tanto política quanto economicamente. Esta dependência cresceu lentamente, já que os portugueses não dominavam o know-how do refino do açúcar. Por isso, enviavam o açúcar bruto na forma de rapadura para Grã-Bretanha e Holanda.

No momento em que, naquela mesma Grã-Bretanha, teve início a revolução industrial, ocorreu o auge do tráfico de escravos, no século XIX. Com o passar do tempo, os britânicos passaram a se envergonhar da escravidão e forçaram, em 1850, o fim do tráfico internacional de escravos. Para isso, contribuiu o fato de que os escravos podiam ser substituídos por máquinas na mineração e nas indústrias. A compra e a manutenção de escravos começou a ficar muito cara. Era muito mais interessante atrair e repelir trabalhadores rurais da Europa.

Oficialmente, o Brasil somente aboliu a escravidão em 1888. A imigração de alemães, desde julho de 1824, entre outros, contribuiu para uma gradativa mudança na mentalidade. Eles colonizaram o sul do Brasil e mostraram que com trabalho próprio é possível construir uma comunidade e uma economia sem necessidade de explorar os escravos. Se é que eles tinham escravos, começaram a pagá-los um salário. Os alemães foram os pioneiros da agricultura familiar e introduziram um sentimento de organização contagiosa. Mesmo na história recente surgiram organizações fortes como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e o Sindicato de Trabalhadores Rurais Fetraf, primeiro no sul do Brasil para, em seguida, difundir nacionalmente.

Cana-de-açúcar versus beterraba-açucareira

Os trabalhadores das indústrias na Grã-Bretanha recebiam sua energia principalmente da importação barata de açúcar. Isto logo representou um problema para a França e suas colônias, onde não havia cana-de-açúcar. Além disso, os britânicos bloquearam a importação de açúcar das ‘Índias Ocidentais’, as Américas. Napoleão solucionou o problema ao iniciar o processamento de beterraba-açucareira. Afinal, o químico alemão Andreas Marggraf já havia extraído, em 1747, açúcar de beterrabas. A primeira fábrica de extração de açúcar de beterraba foi instalada em Silésia, em 1802. Após 1811, sob o comando de Napoleão, foram instaladas mais 40 fábricas na França. Foi assim que a beterraba-açucareira veio a enriquecer a rotação de cultura na Bélgica. Com a queda de Napoleão, o processamento de açúcar de beterraba também sofreu um recuo, mas em 1840 a beterraba-açucareira se espalhou rapidamente na Europa. Em 1880, a produção de beterraba já superava a produção de açúcar de cana importada. Eis aí a raiz do conflito no qual estamos envolvidos até hoje: a guerra entre a beterraba-açucareira da Europa e a cana-de-açúcar das ex-colônias  (2). O conflito foi ainda intensificado pelos novos adoçantes, que surgiram graças à manipulação genética. Eles são centenas e até milhares de vezes mais doces do que açúcar de beterraba ou cana e ameaçam tirar o emprego de centenas de milhares de pessoas.

Será que após 1850 ou, melhor dizendo, após 1888, acabou a escravidão?

O Brasil tem hoje 180 milhões de habitantes. É de se perguntar se os trabalhadores rurais e os 44 milhões de brasileiros subnutridos estão em melhor situação do que os escravos no século XIX. Afinal, um escravo era um investimento e era bem tratado, como um cavalo é bem cuidado para que possa realizar seu trabalho. Evidentemente os ‘bons cuidados’ eram as sobras da alimentação dos senhores: entranhas, ossos, nervos. Também deram origem aos muito apreciados pratos da culinária atual, como feijoada, sarapatel, vatapá. A semelhança se estende aos programas de criação: mulheres sadias e fortes eram levadas para um negro reprodutor selecionado, ao qual era permitido copular para garantir a fecundação.

Agora, em 2004, observa-se os pobres revirarem as latas de lixo à procura de comida ou latinhas para reciclar. Mas, para isso, não é necessário viajar para Curitiba ou Salvador da Bahia. Na Anspachlaan, em Bruxelas, também é possível observá-los indo de latão em latão, nem tanto pelas latinhas, mas mais em busca de comida.

O estranho é que, com o avanço da ‘fronteira agrícola’, não é só este limite que se desloca cada vez mais. Também estão sendo ultrapassados os limites no sentido do retorno de uma verdadeira escravidão. Foi a igreja católica que, já na década de 80 do século XX, deu o alerta sobre os abusos no estado do Pará. Em 2001, ela divulgou um relatório sobre as formas de escravidão modernas no Brasil. Nos últimos tempos, parece que algumas das empresas mais modernas, que dispõem de aviões para pulverização e se encontram nas áreas de produção que estão no topo da vanguarda tecnológica… fazem uso trabalho escravo.

De 1995 até início de julho de 2004, foram resgatados 11.969 trabalhadores rurais que se encontravam em ‘condição análoga à de escravo’. É assim que o Ministério do Trabalho descreve o fenômeno. Quase metade dos casos (5.224) ocorreu, novamente, no Pará. Em segundo lugar vem o estado campeão de produção de soja, Mato Grosso, com 2.435 casos; seguido da Bahia, com 1.139 casos. Depois, vêm Maranhão, Tocantins e Rondônia. Os fazendeiros não se sentem responsáveis, já que os trabalhadores são contratados para trabalhos temporários por ‘gatos’.

O relatório do Ministério do Trabalho mostra que os escravos atuais podem ser divididos em três categorias:

  • o peão-de-trecho (trabalhadores errantes, sem endereço fixo nem vínculo com as famílias);

  • o homem do campo que migrou para a periferia das cidades, mas ainda sobrevive da atividade rural;

  • o que continua no campo, em pequenas propriedades familiares, e faz trabalhos eventuais para complementar a renda.

O peão-de-trecho é o mais vulnerável e o mais dependente do ‘gato’. O ‘gato’ arregimenta trabalhadores e oferece a eles hospedagem e transporte, fazendo com que fiquem em débito com ele. Em seguida, são seduzidos pela oferta de salário, cesta básica e alojamento. Quando chegam às fazendas, fica claro que as promessas não eram (quase totalmente) verdadeiras. Eles vivem, trabalham e moram em condições subumanas. Eles têm uma dívida com o ‘gato’ e também não podem fugir a pé já que, freqüentemente, encontram-se a centenas de quilômetros de qualquer povoado. Muitas vezes os trabalhadores são controlados à mão armada, geralmente sob vigilância de segurança privada. Principalmente nas regiões mais distantes, os fiscais do Ministério do Trabalho precisam ter cuidado redobrado. Na maioria das vezes as pessoas são libertadas com apoio da Polícia Federal. Uma estação intermediária nos poucos casos de fuga bem-sucedidos é, às vezes, a CPT (Comissão Pastoral da Terra, que trabalha com questões agrárias). Este órgão da igreja católica já encontra, há anos, situações de abuso no meio rural.

Escravidão de corpos humanos e do corpo Terra

Tais formas de escravidão já ocorrem há muito tempo nas gigantescas fazendas onde se cria muito gado. Uma das empresas flagradas foi a de Evandro Mutran, na fazenda Peruano. É uma ‘empresa modelo’ com seleção genética das raças ‘Guzerá’, ‘Nelore’ e ‘Girolanda’. Possui 16.500 animais. E lá trabalhava um grupo de escravos. Na verdade, pode-se afirmar que certas formas de escravidão simplesmente continuaram desde a abolição oficial da escravidão. No século XIX, grande parte da região amazônica foi colonizada desta maneira por cearenses. Esta colonização (i)legal também tem geralmente uma longa tradição e penetra cada vez mais profundamente nas florestas. Quinta-feira, 15 de julho de 2004, foram libertados mais 70 trabalhadores na ‘Terra do Meio’. Eles trabalhavam em ‘condição análoga à de escravo’ numa área de 8 milhões de hectares, de propriedade do governo brasileiro e do estado do Pará. Estes fazendeiros ou, neste caso, ‘feitores’, são os assim chamados ‘grileiros’, que promovem o desmatamento ilegal em áreas de propriedade do governo. O problema social novamente dá as mãos ao problema ambiental. Por um lado, muita madeira é cortada, por outro, grandes áreas de floresta são simplesmente queimadas. Em 2003, foram registrados na região amazônica cerca de 120 mil focos de incêndio. Cada vez mais estudos demonstram que estes desmatamentos descontrolados resultam em mudanças climáticas que afetam todo o planeta. Concretamente já existiria uma ligação entre as queimadas no Norte do Brasil e as grandes estiagens no Sul do país, em 2003. Devido à seca, muitos agricultores tiveram sua produção reduzida em mais de 50%.

Com aceitação generalizada – e, portanto (?), não considerados escravos – há os ‘bóias-frias’. São trabalhadores sazonais, arregimentados nos estados mais pobres, para, por exemplo, o corte de cana-de-açúcar. Sua posição social é lamentável, comparável à dos coletores de beterrabas em Flandres que, até a década de 60, iam trabalhar no norte da França.

Soja e escravidão!

O mundo da soja parece, agora, explorar os benefícios da escravidão moderna. O município Sorriso, em Mato Grosso, é o maior produtor de soja do Brasil. O município foi criado há 18 anos, tem agora 52 mil habitantes e representa 18% das lavouras de grãos do Mato Grosso. O prefeito, José Domingos Fraga Filho, declara orgulhoso: “Aqui, praticamente não usamos mão-de-obra. Tudo é feito usando tecnologia de ponta.” Só de soja, foram plantados no último ano 590 mil hectares. Ainda assim, três das maiores empresas da região foram flagradas usando trabalho escravo. E trata-se do início de uma longa lista.

Também foi divulgado que, em 2002, o Ministério do Trabalho libertou 153 trabalhadores da fazenda Senor, em Dom Eliseu (Pará). A empresa é propriedade da multinacional belga Sipef. O representante da Sipef no Brasil, Joost Christian Brands Smit, negou que também era usado trabalho infantil.

Bruxelas e São Paulo

Então os belgas e outros europeus têm aqui seus interesses. Mas será que nessa mesma Bélgica a situação é muito melhor? É bem verdade que não há ‘escravos’, mas centros como ‘Pagassa’ trabalham há anos acolhendo vítimas do tráfico humano. Trata-se de pessoas que – na Ásia (entre outros, mulheres chinesas) e em outros continentes – são seduzidas com promessas e, na seqüência, são encaminhadas para a indústria do sexo ou outra qualquer do submundo. Os poloneses estão numa situação um pouco melhor  (3). Eles vêm de ‘livre e espontânea vontade’ porque seu meio rural se tornou um deserto social. Há 60 mil poloneses em nosso país. Eles fugiram, principalmente, da Podlásia, no nordeste da Polônia. Antigamente eles iam para os Estados Unidos. Há 15 anos eles partem com um visto de turismo para Bruxelas. Agora eles viajam entre seu país e a capital da União Européia, da qual fazem parte desde 1o de maio de 2004. As mulheres trabalham principalmente como empregadas domésticas, os homens em reformas: não é por acaso que são atividades que são realizadas predominantemente dentro de casa. São Paulo também recebe um fluxo enorme de trabalhadores ilegais. Lá vivem e trabalham – legalmente – 18 mil bolivianos. A Pastoral do Migrante, da igreja, estima que haja outros 70 mil ilegais. O Ministério do Trabalho considera esta exploração de pessoas como a variante urbana da escravidão que ocorre no campo. Também é um ‘trabalho forçado’, ainda que seja em condições menos desumanas. Este sistema utiliza, similarmente, ‘gatos’ e a acumulação de dívidas. O ‘gato’, porém, transfere sua área de atuação para a Bolívia, onde atrai e aprisiona os ‘ratos’. E o anonimato das grandes cidades faz as vezes da distância das fazendas.

Estados Unidos

No século XIX foi criado, nos Estados Unidos, o sindicato rural ‘Family Farmers’ [Agricultores Familiares]. Eles se apresentavam como ‘familiares’ para deixar claro que não queriam ter nada com a escravidão. O trabalho era realizado somente pela família.

Eu acho que a agricultura familiar do Brasil do século XXI tem muitos trunfos para promover sua soja pura. Agroecologia, soja não manipulada geneticamente e também respeito aos direitos humanos fazem parte dos ingredientes de uma outra realidade da soja.

‘Family Farmers’ é membro do movimento internacional de trabalhadores rurais Via Campesina (www.viacampesina.org). A agricultura familiar do Brasil está se organizando, agora, em nível nacional na Fetraf-Brasil (www.fetrafsul.org.br) e pactua com as teses da Via Campesina.

Uma troca de experiências entre EUA, Brasil e Europa pode fortalecer a agricultura familiar e dar uma chance à produção sustentável de soja.

Escravidão não faz parte disso.

 

1 A Articulação Soja, na Holanda, editou no início de 2004 um DVD de grande impacto sobre a problemática: ‘Green Gold. Soya plantations encroaching on Brazilian savannah and rainforest.’ [título em português: ‘O ouro verde’]. www.bothends.org
2 Ver publicação de Wervel acerca da atual problemática do açúcar.
3 Sobre os poloneses (i)legais na Bélgica, leia o artigo de John Vandaele (‘De Poolse migratie smaakt zuurzoet’ [A migração polonesa tem um sabor agridoce]), na ‘Mondiaal Magazine’ (Mo*), julho de 2004, p. 20-21. www.mo.be

Mots-clés

violation des droits humains, conditions de travail, soja, agriculture d’exportation


, Brésil

dossier

Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano

Notes

Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.

Source

Livre

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