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Contribuições da produção para autoconsumo no acesso aos alimentos

Edmar Gadelha, Renato S. Maluf

06 / 2008

Estudos demonstram que as causas da insegurança alimentar de parte significativa da população brasileira estão relacionadas, diretamente, às dificuldades de acesso aos alimentos, seja pelo não-acesso aos meios produtivos, seja por falta de trabalho e renda necessária para aquisição nos mercados. Nesse contexto mais geral é que devem ser abordados os significados da produção de autoconsumo para a segurança alimentar e nutricional das famílias. Vale ressaltar que essa produção é praticada não apenas pelas famílias moradoras em áreas rurais, mas também por um grande número daquelas situadas em áreas urbanas e periurbanas.

Antes considerada sinal de atraso, antítese da modernização da agricultura, a produção de alimentos para autoconsumo constitui elemento-chave para o acesso a uma alimentação segura – em face das flutuações da renda monetária própria da atividade agrícola – e, também, a alimentos saudáveis oriundos de cultivos onde, raramente, são aplicados agrotóxicos.

Revelase ainda mais fundamental diante da concentração fundiária, das restrições ao acesso aos recursos naturais e dos baixos preços que recebem pelos produtos – fatores que comprometem o resultado econômico das atividades das unidades familiares rurais no Brasil (Maluf, 2007). A produção para autoconsumo permite às famílias rurais atender a uma necessidade constante, apesar da variação sazonal de sua renda monetária, e dispor de um padrão alimentar superior quando comparado às famílias urbanas com renda semelhante (Leite, 2004).

Em 2003, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo José Gomes da Silva (Itesp) realizou pesquisa sobre a produção de alimentos para consumo familiar em assentamentos da reforma agrária no estado. De acordo com o estudo, a produção para autoconsumo se faz presente na quase totalidade dos lotes. Há desde famílias que dispõem de apenas alguns produtos até aquelas que, com elevada e diversificada produção, só compram o que não podem produzir em seu próprio lote (Santos; Ferrante, 2003).

Embora não existam dados específicos a respeito, é possível supor que o plantio e a criação de animais para o autoconsumo representam, para milhares de famílias rurais no Brasil, duas das principais formas de obter alimentação. Além disso, tal produção ajuda a construir a segurança econômica que a família necessita para se lançar em novos projetos (pág. 42).

Em boa parte das famílias rurais, o cultivo e a criação de animais para consumo próprio devem ser cotejados à situação de vulnerabilidade em que as famílias se encontram. Tal situação é própria da exclusão social engendrada pelo modelo de desenvolvimento predominante na agricultura brasileira, centrado na grande produção para exportação – que resulta em restrições severas no acesso à terra, à água e aos instrumentos da política agrícola.

A carência de instrumentos de política (agrícola e não-agrícola) adequados a esses segmentos, aliada aos riscos produtivos próprios da atividade agrícola, aumenta as dificuldades das famílias no rompimento do ciclo de pobreza e insegurança alimentar a que se vêem submetidas por gerações.

Nesse contexto, adquire relevância observar como o fenômeno da produção para autoconsumo se manifesta entre famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família (PBF), com base em pesquisa recente desenvolvida por Ibase, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Sem financiamento ou assistência técnica

Em primeiro lugar, é importante destacar que as famílias beneficiadas pelo programa indicaram que os gastos com alimentação constituem a maior despesa da família – 24,5% do total declararam ter gasto, nesse item, até R$ 100 nos últimos 30 dias. Para 40,4% das famílias, os gastos com alimentação se situaram entre R$ 101 e R$ 200. Como mostra o Gráfico, os dados indicam que quanto menor a renda da família, maior, proporcionalmente, é o gasto com a alimentação.

Entre as principais formas de se obter alimentação para as famílias identificadas na pesquisa, a compra de alimentos no mercado foi apontada por 96,3% das famílias, seguida pela alimentação escolar (33,4% das indicações) e pela ajuda de parentes e amigos (19,8% das citações).

A produção de alimentos para consumo próprio foi citada por 16,6% das famílias entrevistadas, percentual que corresponde a 1.833.889 famílias do total beneficiado pelo programa. O cultivo de algum alimento ou a criação de animais para consumo próprio adquire maior importância como forma de acesso à alimentação na Região Nordeste (21,3% das famílias), e é menos significativo na Região Centro-Oeste (7,0%).

 

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Mais da metade (56,6%) das famílias que plantam e/ou criam animais para a própria alimentação é proprietária da terra onde trabalha – no Norte, o percentual chega a 70,9%. Na Região Sul, 8,8% das famílias que produzem para consumo próprio são assentadas por programas de reforma agrária; no Nordeste, o índice cai para 1,6%. O tamanho das áreas pertencentes às famílias que se dedicam ao cultivo e à criação de animais para o consumo alimentar é de até 2 hectares para 61,5%. Na Região Sudeste, as famílias com áreas de até 2 hectares representam 75,9% do total da região.

As famílias que têm na produção de alimentos para consumo próprio uma das principais formas de acesso à alimentação, geralmente, não acessam os programas de crédito para custeio de suas plantações ou criações. Tampouco recorrem a financiamentos e empréstimos para as atividades produtivas. A pesquisa constatou que das famílias beneficiadas pelo programa que produzem para o autoconsumo, 83,1% não firmaram nenhum contrato de financiamento. Na Região Centro-Oeste, 91,5% não acessaram nenhuma modalidade de financiamento agrícola nos últimos três anos.

Por fim, as famílias produtoras de alimentos para subsistência que participam do programa alegam não receber nenhum tipo de assistência técnica para a prática da agricultura e/ou criação de animais. A falta de assistência técnica é realidade para 95,5% dessas famílias – na Região Norte, o percentual sobe para 98,6%.

Terra para quem vive dela

As condições adversas em que se encontram as famílias atendidas pelo PBF, mas que contam com a produção para autoconsumo entre as formas de acesso à alimentação, indicam ser necessário ampliar e integrar programas e ações públicas na busca pela superação da insegurança alimentar constatada na maioria dessas famílias.

A percepção dos(as) titulares do benefício do programa sobre a sua repercussão na alimentação da família é de que o incremento de renda proporcionado favorece o aumento da quantidade e da variedade de alimentos consumidos. Com mais recursos financeiros, os(as) beneficiados(as) ficam em melhores condições de satisfazer necessidades principais, entre as quais se destaca o acesso aos alimentos. A produção de alimentos para o autoconsumo faz parte da estratégia de reprodução das famílias, particularmente entre as famílias rurais. Sua importância é maior nas situações onde a escassez de recursos monetários se agrava. Podendo dispor de alguns alimentos produzidos pela família, a renda conseguida com a venda de pequenos excedentes, do trabalho assalariado ou de benefícios de programas públicos pode fazer frente a outras necessidades, como gastos com saúde, educação, vestuário e habitação.

A pesquisa do Itesp (Santos; Ferrante, 2003) em assentamentos concluiu que parte significativa da alimentação é retirada ou depende diretamente da produção comercial do lote, e esse consumo é tanto maior quanto melhor o desempenho econômico do(a) assentado(a). A pesquisa do Ibase, por sua vez, revelou outro aspecto importante. Para as famílias rurais beneficiadas pelo programa que plantam e criam animais para autoconsumo, a relação com a propriedade da terra torna-se significativa para a segurança alimentar.

Entre as famílias rurais que detêm a propriedade das áreas onde desenvolvem atividades agrícolas e de criação, 19,5% encontramse em situação de segurança alimentar. Esse percentual, já reduzido, é ainda inferior (6,9%) para aquelas que afirmaram não serem proprietárias da terra (posseiras, arrendatárias, comodatárias, agregadas e outros). Já para as famílias assentadas em projetos de reforma agrária, aquelas em situação de segurança alimentar atingem o percentual de 26,5% – dado bastante significativo se comparado com as famílias que não detêm o controle da terra onde trabalham – mas ainda revelando uma grande fragilidade na sua capacidade de provir alimentos.

As famílias que se utilizam da produção para autoconsumo apontaram a dificuldade de acesso à terra como principal problema – 20,9% do total. Na Região Sul, a pouca disponibilidade de terra para trabalho é indicada por 23,5% das famílias. No Nordeste, a pouca disponibilidade de água (19,0%) e os altos custos dos insumos agrícolas (20,1%) foram também citados como dificuldades enfrentadas para realização das atividades agrícolas. Além disso, as pequenas áreas disponíveis para a produção, quase sempre, encontram-se degradadas ou com baixa fertilidade. Outros problemas mencionados dizem respeito a perdas da lavoura diante de adversidades climáticas e ataques de pragas, influenciando na produtividade.

A falta de programas públicos específicos voltados para essas famílias compromete ainda mais a já frágil situação de vulnerabilidade social em que vivem. Embora programas públicos de transferência de renda, como o PBF, venham aportando recursos monetários significativos, são necessárias ações que possam valorizar, promover e apoiar a produção de alimentos para o consumo próprio no âmbito de uma política nacional de segurança alimentar e nutricional e na perspectiva do direito humano a uma alimentação saudável e adequada. Nesse aspecto, a integração de ações nos territórios e sua interação intersetorial poderão ser capazes de contribuir para o fortalecimento das famílias em um processo de construção de cidadania ativa.

Algumas iniciativas tornam-se fundamentais no sentido de valorizar, promover e apoiar as famílias que recorrem à produção de alimentos para o próprio consumo, principalmente nas áreas de maior ocorrência. Para isso, o PBF deve se articular às ações nas seguintes áreas: fortalecimento da agricultura familiar de baixa renda, com linhas de crédito e assistência técnica; agricultura urbana e periurbana no contexto da reforma urbana; acesso à terra mediante ações de distribuição e regularização fundiária; implementação de programas de fundos solidários; comercialização do excedente da produção no mercado institucional, por exemplo, na alimentação escolar.

Os espaços da produção para o autoconsumo variam em função do planejamento de cada família, que leva em conta disponibilidade de terras, mão-de-obra, insumos e água. Em geral, as hortas, os pomares e a criação de pequenos animais, soltos ou abrigados em pequenas construções de madeira, localizam-se ao redor da casa para facilitar o trabalho. As famílias que dispõem de área para pastagem, com criação de algumas vacas leiteiras, podem melhorar o padrão da alimentação.

A produção proveniente das hortas familiares garante grande variedade de verduras e legumes, permitindo o acesso rápido e facilitando o preparo dos alimentos. O pomar doméstico possibilita o acesso a frutas que são utilizadas tanto para consumo in natura como no preparo de sucos e doces. A criação de porcos, confinados em baias ou piquetes e alimentados com milho, mandioca e sobras de comidas fornece a carne, assim como a criação de galinhas, patos e codornas. A produção oriunda de lavouras, como arroz, feijão, milho e mandioca, possui área própria e também se destina ao consumo da família, sendo o excedente geralmente vendido, trocado ou doado.

Nas áreas urbanas, famílias que dispõem de pequenos lotes ou têm acesso a terrenos públicos utilizam esses espaços para a produção de alimentos para o autoconsumo como forma de garantir o acesso familiar à alimentação. Essa prática – conhecida como agricultura urbana e periurbana – vem crescendo nos últimos anos e já é objeto de ações e programas públicos específicos em diversos municípios brasileiros, bem como no âmbito dos planos-diretores das cidades e das políticas municipais de segurança alimentar e nutricional.

Mots-clés

sécurité alimentaire, pauvreté, lutte contre la pauvreté, politique sociale, revenu minimum


, Brésil

dossier

Sécurité alimentaire, revenu et politiques publiques au Brésil : le programme Bolsa Familia en question

Notes

REFERÊNCIAS

CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2., 2004, Olinda. Relatório final. Brasília, DF: Consea, 2004.

INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS. Repercussões do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas. Relatório final de pesquisa. Rio de Janeiro: Ibase; Redes; Brasília, DF: Finep, 2008.

SANTOS, I. P.; FERRANTE, V. L. B. Da terra nua ao prato cheio: produção para consumo familiar nos assentamentos rurais do Estado de São Paulo. Araraquara, SP: Itesp; Uniara, 2003.

LEITE, S. “Autoconsumo y sustentabilidad en la agricultura familiar: una aproximación a la experiencia brasileña”. In: BELIK, W. (Org.). Políticas de seguridad alimentaria y nutricion en América Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004. p. 123-181.

MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petrópolis: Vozes, 2007.

ROMEIRO, A.; GUANZIROLI, C.; PALMEIRA, Moacir; LEITE, Sérgio (Orgs.) Reforma agrária, produção, emprego e renda. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Ibase; FAO, 1994.

VIEIRA, M. A. C. “A venda de terras do ponto de vista dos lavradores: a venda como estratégia”. In: Terra de trabalho e terra de negócio – estratégia de reprodução camponesa. Rio de Janeiro: Cedi, 1990.

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Texte original

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