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Crise mundial de alimentos ou crise humanitária?

Mariana Santarelli

06 / 2008

A crise mundial de alimentos vem sendo sentida em todas as partes do mundo e por todos os segmentos da sociedade. Porém, são as famílias mais pobres dos países menos desenvolvidos que sofrem, de forma mais drástica e imediata, com o aumento nos preços. Previsões da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) sugerem que os preços permanecerão altos por, pelo menos, mais dez anos – um risco para a vida de 1 bilhão de indivíduos pobres em todo o mundo.

O debate nacional sobre as formas de enfrentamento da crise estão na ordem do dia e apontam, sobretudo, para o importante papel que o Brasil poderia desempenhar diante desse cenário global – dada a sua capacidade de produção e exportação de produtos alimentares.

Pouco se tem falado, porém, sobre os impactos da crise sobre a parcela mais pobre da população brasileira. Também poucas das diversas estratégias propagadas apresentam soluções capazes de minimizar os efeitos da recente disparada dos preços dos alimentos sobre famílias que, mesmo antes da crise, já se encontravam em situação de insegurança alimentar (IA).

É necessário refletir sobre em que medida muitos dos ganhos alimentares obtidos por meio do Programa Bolsa Família (PBF) – formulado, entre outros objetivos, para lidar com o problema da fome –, podem se perder se não forem pensadas ações estratégicas de médio e longo prazo diante de tal crise. E, também, ações mais imediatas capazes de minimizar seus efeitos sobre a população mais pobre.

Como base para tal reflexão, os dados da pesquisa realizada pelo Ibase (1) permitem maior conhecimento sobre as condições de segurança alimentar dessas famílias, medidas pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), o perfil de acesso à alimentação e as repercussões do programa no acesso e consumo alimentar das pessoas beneficiadas.

Segundo a pesquisa, 6 milhões 100 mil famílias beneficiadas pelo PBF estão em situação de IA moderada ou grave – passaram, nos três meses anteriores à pesquisa, por restrição na quantidade de alimentos e até mesmo fome. As famílias beneficiadas, de forma geral, gastam em média R$ 200 mensais com alimentação, o que representa 56% da renda domiciliar. Para as famílias em situação de IA grave, o percentual chega a 70%. Os dados mostram que são justamente as famílias mais vulneráveis à fome aquelas que comprometem a maior parte de seu orçamento doméstico com alimentação e que, portanto, mais sentem o impacto de aumentos no preço dos alimentos.

De acordo com a pesquisa, as principais repercussões do PBF na alimentação da família referem-se à maior estabilidade no acesso e ao aumento na quantidade e na variedade de alimentos. A garantia de uma renda regular adicional ao orçamento doméstico traz maior segurança para as famílias e potencializa o planejamento de gastos e modificações no padrão de consumo alimentar. É no Nordeste, e entre as famílias que apresentam as formas mais graves de IA (moderada e grave), onde ocorrem as maiores modificações, o que é especialmente relevante considerando que são justamente as famílias com alimentação mais insuficiente e pouco variada. (2)

Ainda que o aumento da renda propiciado pelo PBF tenha se convertido em ganhos na qualidade e diversidade da alimentação, segundo as pessoas entrevistadas, o preço elevado dos alimentos permaneceu como principal limitador do consumo alimentar de todos os tipos. Fica claro que a possibilidade de as famílias acessarem uma alimentação adequada depende, sobretudo, de seu poder aquisitivo e desses preços.

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Repercussões da crise

Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o preço da cesta básica acumulou, nos últimos 12 meses, aumentos nas capitais que chegaram a 46,5%, sendo que a Região Nordeste – onde há maior concentração de famílias vulneráveis à fome – é a mais sensível à mudança.

Nesse período, as elevações no preço do arroz nas diferentes capitais variaram entre 13,0% e 47,5%, e do feijão entre 94,9% e 171,6%, causando um impacto significativo no orçamento doméstico das famílias mais pobres – cuja base de alimentação está nessa combinação. O aumento no preço de alimentos como carnes e tomate, que chegaram, respectivamente, a 39,0% e 217,8%, vai significar mais dificuldades para que as famílias possam diversificar sua alimentação – tendência que vinha sendo reforçada a partir do incremento de renda propiciado pelo PBF.

Se as famílias beneficiadas pelo programa gastavam, em setembro de 2007 (data da coleta dos dados), em média, 56% de seu orçamento em alimentação, é de se esperar que, mediante o aumento dos últimos meses, o percentual tenha se elevado, de forma a acompanhar o aumento nos preços dos alimentos. É de se esperar, também, que a renda dessas famílias não tenha acompanhado na mesma proporção – agravando, necessariamente, as condições de segurança alimentar a que estão submetidas.

Diante desse cenário, a diminuição na quantidade de alimentos consumidos e a drástica queda na qualidade e diversidade torna-se inevitável como estratégia de sobrevivência, comprometendo, certamente, ainda mais a saúde das famílias.

O impacto da crise na estrutura orçamentária das famílias reflete-se, ainda, em outros itens prioritários de consumo doméstico para o desenvolvimento humano, tais como material escolar, vestuário e medicamentos. Além disso, corre-se o risco de as famílias que hoje se encontram sob condições de IA leve e moderada migrarem para a IA grave – configurando uma conjuntura que se aproxima, cada vez mais, de uma crise humanitária.

Estratégias de enfrentamento

A situação a que estão submetidas as famílias beneficiadas pelo PBF evidencia um quadro da realidade brasileira que, muitas vezes, não conseguimos, ou preferimos, não enxergar. A idéia de um país em pleno desenvolvimento, que tem na exportação de comodities alimentares um dos motores de seu crescimento econômico, coexiste com o fato de que pelo menos um terço de sua população convive cotidianamente com o fantasma da fome.

Essa contradição, com a qual nos habituamos a conviver, tende a se acentuar com a atual crise mundial de alimentos. Principalmente, se continuarmos seguindo as tendências de liberalização do comércio e desregulamentação de mercado e apostas na capacidade de o mercado livre solucionar mais esta crise.

Não há condições de, neste texto, discutir a fundo a crise, tão pouco apontar saídas. Mas, a título de reflexão, vale partir do pressuposto de que as causas são múltiplas em um contexto de mercado globalizado que tende a reduzir os alimentos à condição exclusiva de mercadoria.

Mais do que aprofundar a necessária discussão sobre alternativas de médio e longo prazos – que passam, necessariamente, por uma revisão do modelo global de produção e consumo de alimentos –, as recomendações a seguir pretendem dar respostas mais imediatas às famílias que não podem esperar.

São ações diretas e de simples implementação, em sua maioria políticas públicas já em andamento que podem ser aperfeiçoadas ou ampliadas, para minimizar os efeitos da crise e manter parte das importantes conquistas obtidas em termos de SAN.

A compreensão sobre as formas pelas quais as famílias beneficiadas pelo PBF acessam a alimentação, também levantadas na pesquisa, trazem elementos para uma reflexão sobre possíveis estratégias de enfrentamento da crise, mais alinhadas com a realidade das famílias pobres brasileiras.

Vale enfatizar que 96,3% das famílias beneficiadas pelo programa têm na compra de alimentos uma das principais formas de acessar a alimentação, seguida pela alimentação escolar (33,4%). Aparecem ainda como relevantes a ajuda de parentes e amigos (19,8%) e a produção de alimentos para o consumo próprio (16,6%). As doações de alimentos (9,7%), a caça, pesca e/ou extrativismo (8,5%) e os programas públicos de assistência alimentar (4,7%) são as formas de acessar a alimentação que aparecem como menos relevantes.

Os dados levantados pela pesquisa não deixam dúvidas quanto à centralidade da aquisição no mercado como principal forma de acesso à alimentação. Isso faz da renda monetária condição primordial, e do recurso transferido pelo programa um complemento fundamental ao orçamento familiar, principalmente para a maioria das famílias que estão no mercado informal e que têm no PBF a única renda mensal garantida e regular.

Diante da disparada dos preços dos alimentos – considerando-se a perda de poder aquisitivo que a crise representa especificamente para esse segmento da população – e visando evitar uma reversão dos ganhos obtidos até então pelo programa, o reajuste no valor do benefício, com base na inflação referente aos aumentos do custo da cesta básica, apresentase como uma estratégia imediata de impacto direto sobre as famílias mais pobres e que pode ser implementada com agilidade.

O Brasil não seria o primeiro país a acionar uma política de transferência de renda já estabelecida como um eficiente instrumento a ser ativado em momento de crise. O governo do México anunciou aumento no valor repassado às 26 milhões de pessoas beneficiadas pelo programa de transferência “Oportunidades”.

A alimentação escolar é outra via de acesso direto às famílias mais pobres que pode ser acionada. Destacada como o segundo mais importante meio de alimentação, é acessada por 83,4% de todos os membros das famílias beneficiadas que estão estudando. Nesse sentido, propõem-se como estratégia

de enfrentamento da crise aumentar o valor per capita da alimentação escolar e sua ampliação para o ensino médio, conforme o projeto de lei que já se encontra em tramitação no Congresso Nacional.

Para as famílias rurais, a produção de alimentos para o autoconsumo permite o atendimento de suas necessidades alimentares, apesar da instabilidade de sua renda. E, em muitos casos, possibilita uma alimentação mais adequada, livre de agrotóxicos e mais próxima de seus hábitos alimentares.

Segundo dados da pesquisa, 60,4% das famílias rurais beneficiadas pelo programa plantam algum tipo de alimento ou criam animais para o próprio consumo, o que demonstra o potencial dessa forma de acesso na garantia de uma alimentação adequada, principalmente porque as áreas rurais apresentam índices significativos de insegurança alimentar grave.

A promoção de ações que possam valorizar, promover e apoiar a produção de alimentos especificamente para esse segmento mais vulnerável da agricultura familiar passam, necessariamente, pela expansão de instrumentos de apoio à agricultura de base familiar, como a ampliação do crédito agrícola, mais especificamente do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf B).

Na região do semi-árido brasileiro, que concentra o maior percentual de famílias em situação de insegurança alimentar grave, cabe reforçar a importância do programa “Um milhão de cisternas + 2”, que visa suprir a necessidade de água para a produção de alimentos.

Vale lembrar que as famílias beneficiadas pelo PBF que se dedicam à agricultura de subsistência combinam a condição de produtoras e consumidoras de alimentos. Portanto, ao apoiar sua produção, há uma melhora simultânea tanto no consumo alimentar da família quanto na oferta local de alimentos.

Nesse sentido, recomenda-se o reforço de políticas que aumentem a demanda por produtos da agricultura familiar, por meio da articulação da produção local com gastos públicos em alimentação (escolas, hospitais, presídios, abrigos, creches) – aos moldes do que já vem sendo implementado por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), porém muito aquém da demanda apresentada.

Existe, ainda, uma série de programas de assistência alimentar, como restaurantes populares, bancos de alimentos, cozinhas comunitárias e varejões populares, que possibilitam a oferta de produtos alimentares adequados e pouco consumidos, como legumes, verduras, frutas e carnes, a preços mais baratos.

Tais ações vêm sendo implementadas, principalmente, nos grandes centros urbanos. Porém, ainda de forma bastante tímida. Na atual conjuntura de uma crise mundial de alimentos que não tem previsão de acabar tão cedo, essas estratégias podem ser mais apropriadas pelos governos locais – que precisam também reconhecer sua parcela de responsabilidade na garantia do direito humano à alimentação.

Enfrentar a crise na perspectiva do direito humano à alimentação, sobretudo em defesa das pessoas mais pobres, confirma e aprofunda a direção que o PBF tomou e que propiciou ganhos de grande valor no campo dos direitos sociais. Para que esses ganhos não sejam perdidos em um contexto de crise mundial de alimentos, a sociedade precisa perceber a gravidade dela sobre a parcela mais pobre da população, e os governos devem ter a coragem de chamar para si a responsabilidade de assegurar esse direito.

1 A pesquisa Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas foi realizada em 2007 e financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Seus principais resultados estão sendo apresentados em vários artigos nesta edição da revista.
2 Sobre repercussões do PBF no consumo alimentar, ver artigo na seção Indicadores, pág. 68.

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