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Estamos fazendo a cidade, Bolivia

Rose Mary Irusta Pérez

2009

Quantos acordos importantes ocorreram ao longo dos anos para melhorar a qualidade de vida das pessoas? Quanto tem sido necessário lutar para que cada um dos Direitos Humanos seja reconhecido? Temos lutado cada um com seu critério, quando na realidade todos juntos somos como o corpo humano: separando um direito do outro estaríamos mutilando-o.

Agora estamos preocupados pelo direito à cidade que, como conjunção de todos os direitos, é quase inconcebível em sua magnitude.

Com a grande massa de veículos circulando perdemos o direito de transitar livremente, do meio ambiente saudável e dos espaços recreativos. Perdemos o direito e este fugiu de nós quando muitas crianças e jovens perderam seu próprio direito de serem amados, cuidados e protegidos por seus pais, autoridades e pela sociedade em geral. Os espaços públicos não são ocupados com tranqüilidade porque andamos sobressaltados. Não existe direito à segurança.

As ruas se transformaram em espaços de venda e de trânsito restringido. Os sindicatos de transporte e comércio esquecem o respeito que devem aos espaços públicos. A pré-venda e a corrupção impedem colocar em ordem nas cidades, sendo que a pressão social faz com que a mesma seja intransitável, com aglomerações de veículos, pessoas, letreiros e lixo. Cada minuto nas ruas são minutos de angústia: motoristas irresponsáveis que não cumprem as regras de trânsito, donos de lojas que se apropriam das calçadas, pedestres irresponsáveis jogando lixo em qualquer parte, menos nas lixeiras quase inexistentes.

Em muitas cidades os espaços recreativos são poucos porque foram planejados. As prefeituras não se preocupam com o crescimento sustentável do bairro, uma vez que não se preocuparam com a explosão demográfica. Tantas consultorias feitas para que mesmo neste tempo de tecnologia avançada não se solucionem os problemas urbanos e, sobretudo, não melhore a qualidade de vidas das pessoas; cada dia o individualismo confronta-nos uns aos outros e a economia nos afasta mais do humano.

Como entender o humano a partir dos direitos humanos, ou como os direitos humanos são entendidos pelas autoridades, que por serem autoridades pensam que merecem obediência cega ao ponto que ignoram as leis e a própria constituição. Sua luta pelo poder os diminui como pessoas. Tanto que não existem em nossas cidades propostas de planejamento urbano num sentido comum para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Fazemos que a cada dia surjam novos assentamentos sem a preocupação pelo meio ambiente, serviços básicos, com a ausência de áreas de equipamentos e ruas seguras.

São muitas as famílias que sofrem na esfera econômica e legal, que caem nas mãos de loteadores que vendem terrenos a preços escandalosos, com cifras especuladas e não controladas; famílias que devem pagar pela falta de áreas verdes e equipamento, isso sem contar aquelas que foram enganadas com a venda de áreas protegidas nas margens dos rios ou áreas verdes já planejadas anteriormente. Para aqueles que não têm interesse no direito à moradia e no direito à cidade, é indiferente a cobrança de honorários para então lucrar com a dura realidade daquelas famílias que caiam armadilha.

Seria muito bom que houvesse o mínimo de sinergia entre autoridades e moradores. Unindo forças e caminhando juntos, avançaríamos e faríamos cidades maravilhosas, teríamos menos pobres, além de menos crianças e jovens nas ruas, menos violência e delinquência.

Devemos contar com servidores e não autoridades. Os serviços são entregues por aqueles que sabem amar de verdade. E somente a honestidade gera o compromisso.

É importante ter boa vontade para alcançar o que se quer fazer; se alguém necessita viver em paz então deve procurar outros que vivam do mesmo modo; se desejo que ninguém me faça sentir mal, farei o possível para que os outros se sintam melhor. As soluções para viver melhor estão em nossas mãos, mas parece que deixamos passar porque simplesmente nos acostumamos a esperar.

Os meios de comunicação nos enviam suas mensagens de tal maneira que já não temos mais nada a fazer, senão esperar.

O que vai acontecer? Para que pensar? Ao final é igual… ser pobre é meu destino e não posso fazer nada, dizem, e tratam de me convencer do fato. Em alguns momentos se fala de esperança, de sonhos, ilusões. Mas, o que significam? Também dizem que tenho direitos. A que? A morrer de fome, a não saber ler nem escrever? Sofrer uma longa agonia por doença, a não ter trabalho bem remunerado? A privacidade, segurança, meio ambiente saudável, serviços básicos, a um nome e sobrenome, a participar, a ser considerada, a ter a sensação de que existo? Parece uma brincadeira porque agora há guerra, morte, sofrimento e já aprendemos a existir por existir.

Diante deste cenário, sonhamos com um mundo melhor, almejamos estar amparados por esse grande acordo das nações pelos direitos humanos, aspiramos ter uma vida plena, desenvolvendo e aperfeiçoando a concepção desses direitos. Buscamos integrá-los em concepções complementárias e convergentes como o direito à moradia e ao hábitat digno, além do direito à cidade; direitos de gozar de espaços de vida. Todos os direitos humanos poderiam ser realizados se colocássemos as pessoas numa bolha de cristal, superprotegidas e isoladas? O espaço e a interação dos espaços são a chave no desenvolvimento das pessoas. Devem-se gerar as condições ambientais e de infraestrutura necessárias para que as pessoas desenvolvam qualidades humanas e qualidades que as ajudem a se relacionar com outros seres humanos livremente, sem coerção nem intimidação, como acontece com os que vivem no campo frente às práticas urbanas, por vezes alheias demais ao seu entorno. Para que receba educação e eduque seus filhos sem preconceitos nem medos, para que acesse, em condições de igualdades, os serviços básicos, saúde, educação e para que possa transitar livremente onde sua liberdade de viver o chame.

Este panorama, aparentemente hipotético, não é apenas responsabilidade dos líderes nacionais, mas também das autoridades locais que, com sua iniciativa, enfrentam essa complexa rede de dificuldades econômicas, os conflitos sociais e o desdém político.

Existe uma comunidade na cidade de Cochabamba que surgiu há 10 anos. Alguém que vive lá nos contaria deste modo:

Dizem que existe um pequeno lugar que se chama “Hábitat para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora”, onde vivem 265 famílias que juntas constroem sua comunidade. Abrem suas ruas com trabalho comunitário, constroem suas casas em ayni (ajuda mútua), fazem quermesses e o que ganham pode ser investido na saúde ou, se necessário, na construção de sua moradia. Não existem chicherias (1) nem outros lugares que vendem bebida alcoólica. Para mim é bom porque meu marido bebe muito e depois me bate. Além disso, lá não pode me bater porque dizem que existe um Comitê de Apoio às Famílias. Se me bate uma vez, falam com ele, refletimos e do mesmo modo na segunda vez, porém se existir uma terceira o mandam embora. Acho que lá me sentiria segura, especialmente pelos meus filhos, porque lá não existe repartição e divisão das casas caso nos separemos. Já não precisaria mais pedir uma casa. Pensava que devia aguentar a violência do meu marido, porque não poderia manter meus sete filhos, mas lá nos incentivam a seguir adiante, a procurar trabalho. Aprendemos trabalhos manuais, a ler e a escrever e, para nossos filhos, existem creches e apoio escolar. Como é uma comunidade, dizem que posso pedir para minha vizinha que cuide dos meus filhos enquanto estou no trabalho. Também não entram em nossas casas para roubar porque todos se conhecem, não há estranhos e todos cuidam uns aos outros. Quando alguém grita, muitos saem em defesa.

Estão bem organizados e trabalham como formiguinhas todos os domingos. Possuem um diretório que muda a cada dois anos, no qual as duas primeiras cabeças são mulheres. Deve ser por isso que contam com água, esgoto, telefone, luz, parque infantil e duas quadras de esportes onde todos jogam e fazem campeonatos. Como é importante conhecer os próprios direitos! Agora me dou conta, diziam que tenho direito a uma casa, mas custa tanto. Os direitos são para aqueles que têm dinheiro e eu não tenho.

Direito a saúde: se tens uma casa também terás direito à saúde, mas, digo para mim mesma, é difícil. Se ficar doente, devo ir ao hospital, não ficar em casa. Mas além de resfriados, as doenças são por outros motivos: pelas preocupações. Como a casa é minha, já não preciso me preocupar com despejos por não conseguir pagar o aluguel ou porque minhas crianças fazem barulho. O pior, em muitos casos, é quando existem violações por parte dos filhos dos proprietários, ou mesmo dos pais e dos irmãos, por viverem tão perto e deixarem suas filhas trancadas.

Direito à educação, porque quando era pequena tive que ensinar as crianças a ter valores, organização, disciplina, a dividir as tarefas da casa, etc. Direito ao trabalho. Ultimamente, como era inquilina, não tinham confiança para me dar um trabalho, porém se tens tua casa como garantia, sabem onde vives e os vizinhos dão referências sobre ti, como é uma comunidade, todos se conhecem e sabem como nos comportamos. Direito a viver sem violência, já que na comunidade existe um comitê de apoio às famílias que as deixa melhores. O trabalho de reflexão que fazem faz com que os maridos deixem de maltratar tanto as mulheres como os filhos.

Direito à segurança. Todos nos conhecemos e se algum estranho caminha por lá, perguntamos e, se alguém grita, em seguida toca-se o alarme e todos saímos. Com o diretório, temos uma ata de bom comportamento que nos obriga a resolver cada problema, pedir desculpas e nos reconciliar. Quão importante é nos relacionarmos uns com os outros e não sermos inimigos. Direitos a segurança alimentícia: temos nossa pequena horta que nos ajuda a ter algumas verduras e aprendemos a equilibrar nossos alimentos. As senhoras dizem que assistiram a seminários, oficinas e cursos, que aprenderam a defender seus direitos. As senhoras que organizaram o Hábitat para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora estiveram aprendendo sobre o direito humano à moradia com a Rede Hábitat a nível nacional e pertencem ao Centro de Iniciativa Cochabamba. Em dez anos avançaram à custa de muito trabalho e ainda tem muito que fazer. A solidariedade está dentro de cada um, embora adormecida, mas quando necessário sai para atender às pessoas que sofrem.

Poderíamos contar outras experiências de mulheres que chegaram a esta comunidade para construir sua casa com muito esforço. A maioria delas economizou centavo por centavo para comprar desde um tijolo até um pacote de pregos.

Como comunidade exercemos o direito à moradia, mas com todos os seus componentes, porque o município não compreende claramente o que é o direito de propriedade coletiva e a forma de organização, embora esteja claramente estabelecido na Constituição (Art. 56 parágrafo I, Art. 21), considerando inclusive que se trata do direito humano à moradia e é obrigação do estado tornar possível o cumprimento deste direito. O mínimo que deveria fazer é facilitar e propor soluções ao problema sem prejudicar e sem afirmar que somos ilegais, já que o terreno foi obtido por compra e a constituição respeita também o direito de propriedade, seja individual ou coletivo.

O lote e a casa são para que a família viva e não para que obtenha lucro, de modo que não se pode vender, alugar, ou qualquer outro procedimento que vise o lucro.

Lamentavelmente, nestes dez anos houve oito divórcios ou separações, sendo três forçados, porque se convidou os maridos violentos a deixarem a comunidade e os outros foram embora por espontânea vontade. Em todos os casos pediram a divisão da casa, mas foram rechaçados devido às condições impostas pela comunidade. Somos uma comunidade onde é possível o direito humano à moradia para pessoas de baixa renda, especialmente para mulheres chefes do lar. O princípio do direito humano à moradia transversaliza e se inter-relaciona à educação, porque é lá onde os filhos e filhas aprendem a cultivar os valores, a organização, a comunicação e as relações humanas; a saúde, quando vemos que uma habitação ventilada e espaçosa satisfaz as necessidades básicas e propicia o descanso, evitando, por sua vez, doenças; ao trabalho, por ser a moradia o ponto de referência para que o contratante confie e os bancos fiem. A comunidade garante segurança porque as famílias não estão sozinhas e cada uma se preocupa pelo que acontece com a outra.

É uma comunidade forjada como esforço e compromisso de cada um de seus habitantes, que tem claras as suas regras. Uma comunidade que tem sabido gerar, facilitar e maximizar os recursos econômicos e humanos, criando pequenos créditos para a autoconstrução de habitações, para atender emergências de saúde e para empreendimentos econômicos. Estas alianças também estão solidárias ao Hábitat para a Humanidade e a Fundação Pró-Hábitat, que apóiam as famílias com créditos para casa nova ou para melhorias.

Hábitat para a Mulher Comunidade Maria Auxiliadora é um projeto onde o princípio é a família. Está conformada por mais de 320 grupos familiares e com mais de 600 em processo de compra do lote para construir sua casa. Um espaço comunitário que vela pela acessibilidade de seus membros a espaços de equipamento e recreação, a segurança dos cidadãos e o cuidado com o meio ambiente, alheio a pressão dos ruídos estridentes e a contaminação, com ruas seguras e espaços recreativos que permitem a integração social com pessoas de outros bairros.

1 Lugar onde se vende a chicha, uma bebida típica do lugar.

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