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A indústria dos agrocombustíveis na Guatemala

Hannah WITTMA, Laura SALDIVAR TANAKA, Julian XACULT

07 / 2007

Histórico da posse da terra

O sistema fundiário na Guatemala tem raízes na conquista espanhola, quando a terra foi expropriada das populações indígenas e dada como recompensa aos novos colonizadores. Depois da independência, em 1821, a posse da terra permaneceu altamente desigual. Produtores de culturas de exportação, como a cana-de-açúcar, forçaram os indígenas a se deslocarem para altitudes mais elevadas, cujo clima muito frio era inadequado para o tradicional cultivo da milpa (consórcio de milho e feijão).

Até hoje a população rural da Guatemala sofre com um dos mais injustos sistemas de concentração fundiária do mundo. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Alimento, 0,15% dos produtores detinham 70% das terras aráveis, produzindo para exportação; enquanto 96% dos produtores ocupavam apenas 20% das terras. No campo, 90% dos habitantes vivem na pobreza e mais de 500.000 famílias estão abaixo do nível de subsistência. Ao mesmo tempo, o país tem uma das populações rurais historicamente mais estáveis da América Latina, abrangendo 69% do total, e acima de 50% do conjunto dos trabalhadores encontram-se envolvidos com a agricultura.

Diversas análises sugerem que as terras de cultivo na Guatemala têm se tornado cada vez mais concentradas com o passar do tempo. Entre 1964 e 1979, o número de unidades agrícolas com menos de 3,5 ha duplicou e o tamanho médio daquelas com menos de 7 ha caiu de 2,4 ha para 1,8 ha, no período de 1950 a 1979. Analisando os dados do Censo Agrícola de 1979, verificamos uma distribuição de terra extremamente desigual: 88% das propriedades tinham uma área menor que os 7 ha necessários para a subsistência das famílias, possuindo 16% das terras aráveis, enquanto pouco mais de 2% das fazendas mantinham 65% das terras aráveis.

Os mais de trinta anos de intervenções no campo por diferentes governos, seja a colonização dirigida pelo Estado ou o programa impulsionado pelo mercado, não afetaram a estrutura agrária concentradora e excludente: manteve-se o padrão latifúndio-minifúndio, o dualismo entre a produção agroexportadora e a de consumo interno.

A maior parte da terra está concentrada em poucas mãos e as grandes propriedades dominam áreas onde a terra é mais fértil, situadas ao sul do país, no litoral Pacífico. Esta região concentra a produção de cana, controlada por grandes empresários ou usineiros.

A Coordenação Nacional de Indígenas e Camponeses (CONIC) denuncia que, nos distritos montanhosos, o problema do minifúndio tornou-se endêmico e grande parte da população indígena migrou, devido a pouca disponibilidade de terra arável. Estima-se que mais de 60% da população rural economicamente ativa dos distritos montanhosos migra em busca de emprego durante algum período do ano.

A concentração fundiária, fruto da expropriação histórica das terras indígenas, tem sérias conseqüências para o uso sustentável da terra, a autosuficiência dos pequenos proprietários e a soberania alimentar. Além disso, o deformado regime agrário guatemalteco resulta em uma desproporção de recursos públicos direcionados ao setor agro-exportador, em detrimento da produção de alimentos para o mercado interno.

A Reforma Agrária

Juan Jose Arévalo tornou-se presidente em 1945, promulgando uma nova constituição que estabeleceu a “propriedade social da terra” e a erradicação do latifúndio. À época, os 22 maiores latifundiários possuíam mais terras do que cerca de 250 mil famílias camponesas. A Ley de Titulación Suplementaria foi aprovada, determinando a concessão do título de propriedade aos posseiros que cultivassem a terra por mais de dez anos.

A legislação de Arévalo e a crescente proeminência das organizações de trabalhadores e camponeses durante o período de 1944-1954 constituíram a base do programa de reformas de Jacobo Arbenz, eleito presidente em 1951. Deparando-se com uma distribuição fundiária na qual 88% das unidades agrícolas ocupavam 14% das terras e os grandes fazendeiros cultivavam, em média, 19% de suas propriedades, a 17 de junho de 1952 o Congresso Guatemalteco aprovou a Lei de Reforma Agrária. Seus principais objetivos eram eliminar as condições feudais e todas as formas de servidão do trabalho, prover terra aos trabalhadores sem-terra ou com pouca terra e distribuir crédito e assistência técnica aos pequenos proprietários. Estimase que 180 mil famílias foram beneficiadas, representando cerca de 10% da população total da Guatemala, à época.

A oposição à reforma agrária foi rápida e decisiva. Em 27 de junho de 1954, Arbenz foi deposto pelo coronel Castillo Armas. A reforma agrária na Guatemala tem sido virtualmente um “tabu” desde que o programa de Arbenz foi esmagado em 1954.

A pressão do governo dos EUA para “repelir a ameaça comunista”, enquanto protegiam os interesses de companhias norte-americanas, principalmente a United Fruit, facilitou o golpe militar, apoiado pela CIA, e reverteu a tentativa de transformação agrária. Nos primeiros seis meses após o golpe, a maioria das expropriações foi anulada e as terras retornaram a seus antigos donos.

Nenhuma expropriação de terra ocorreu na Guatemala desde 1954, fortalecendo o injusto sistema de distribuição de terras que persiste até hoje. As três décadas de ditadura que se seguiram causaram a morte de cerca de 300 mil pessoas. O Exército cometia massacres. Massacraram dirigentes campesinos, sindicatos, líderes de diferentes organizações sociais, e também invadiram a terra de várias comunidades. Muitos membros de sindicatos foram massacrados e isso resultou em um grande temor para os trabalhadores que persiste até hoje, como no caso dos cortadores de cana, que têm medo de se organizar.

O apoio dos EUA, incentivando as exportações agrícolas para o mercado externo, ajudou os grandes produtores de cana-de-açúcar e consolidou a repressão, como um “aviso” contra futuras distribuições de terra. Na década de noventa, dois pontos dominaram o debate político na Guatemala: a pressão de organismos internacionais para implementar políticas neoliberais de ajuste estrutural e o processo de paz visando negociar o fim da guerra civil.

Os Acordos de Paz

Em 6 de maio de 1996, o Governo Guatemalteco, o Comando Geral da Unidad Revolucionaria Nacional Guatemalteca e um representante das Nações Unidas assinaram o “Acordo sobre aspectos sócio-econômicos e situação agrária”, como parte de um abrangente “Acordos de Paz” que, oficialmente, pôs fim a 36 anos de guerra civil. As negociações simbolizaram um marco na tentativa de redirecionar as abordagens sobre o histórico problema fundiário no país.

Dois outros componentes do tratado de paz, o “Acordo sobre Direitos e Identidade do Povo Indígena” e o “Acordo de Reassentamento de Populações Desalojadas”, também se referem à questão agrária e ao desenvolvimento rural. O primeiro enfatiza o dever do Estado em prover terra aos povos indígenas, eliminar a discriminação de gênero e regularizar as posses comunais. O segundo reitera o compromisso do governo com a resolução de disputas por terras geradas durante a guerra e a identificação de áreas para reassentamento. Entretanto, até o momento, a maioria das cláusulas do Acordo de 1996 não foi cumprida; persistem os problemas de pobreza rural e acesso à terra.

Os termos do Acordo resultaram de prolongadas negociações entre vários grupos. A Coordenação Nacional de Organizações Camponesas (CNOC) exigiu a garantia da posse da terra para os pobres, o cumprimento dos direitos humanos, a desmilitarização do campo, o apoio financeiro e técnico, o respeito ao modo Maia de encarar o mundo e a reforma da Constituição e das instituições estatais. A CNOC também reintroduziu a idéia de “propriedade social” como forma de defender a recuperação e proteção de terras comunais camponesas e indígenas.

Atualmente, a avaliação dos movimentos sociais rurais é de que a situação de fome e pobreza piorou após os acordos de paz, pois durante a guerra civil havia mais pressão popular para manter os direitos dos trabalhadores.

A situação dos trabalhadores no corte da cana

Segundo avaliação da Coordenadora Latinoamericana de Organizações do Campo (CLOC), depois dos acordos de paz houve um aumento do trabalho temporário e da degradação dos direitos trabalhistas no meio rural. O período médio de trabalho é de apenas três meses. Os trabalhadores não têm contrato direto com as empresas. Desta forma, as empresas fogem da responsabilidade de respeitar leis trabalhistas. O acordo é negociado através de intermediários, que recebem uma porcentagem do salário dos canavieiros.

Não há políticas públicas que garantam os direitos dos cortadores de cana. Durante o governo de Jacobo Arbenz Guzmán foi criado o Instituto Guatemalteco de Seguridade Social, que deveria garantir direitos básicos e aposentadoria rural. Porém, atualmente esta instituição está ameaçada pelo processo de privatização de serviços públicos.

Grande parte da mão-de-obra na indústria da cana é migrante, formada por camponeses das regiões montanhosas do país. As condições de trabalho são extremamente precárias. Os canavieiros vivem em galpões, sem instalações sanitárias. Para agüentar o trabalho forçado, recebem substâncias químicas estimulantes. No caso de sofrerem acidentes de trabalho ou outros problemas de saúde, que ocorrem com freqüência, não recebem tratamento médico. Não há serviços de saúde pública ou assistência por parte das empresas a esses trabalhadores.

Reivindicações das organizações camponesas

Para a Coordenadora Nacional de Organizações Campesinas – CLOC, o princípio fundamental do desenvolvimento rural é o acesso à terra, apoiado por investimentos em infra-estrutura e serviços para facilitar meios de vida sustentáveis. Os movimentos sociais propõem o fim do modelo agroexportador, a democratização da terra e a diversificação da economia.

Suas reivindicações incluem:

a) O resgate de terras públicas, improdutivas e comunais. A democratização da posse da terra é baseada nos seguintes princípios: “terra para quem cultiva; função social da propriedade; reconhecimento de reivindicações históricas pela terra”.

b) Direitos e seguridade social: As mulheres e as comunidades historicamente marginalizadas devem ser priorizadas.

c) Eliminar latifúndios improdutivos e aplicar um imposto sobre terras ociosas que obrigue os proprietários a gerar empregos ou a passar a terra aos camponeses sem-terra.

d) Realizar a expropriação de terras ociosas e pouco utilizadas e recuperar as terras usurpadas durante a guerra civil.

e) Limitar a extensão das terras.

Palavras-chave

agrocombustible, reforma agrária, sistema agrícola, redistribuição de terras, condições de trabalho


, Guatemala

dossiê

Agroenergia: Mitos e impactos na América Latina

Notas

Os textos e o manifesto “Tanques Cheios às Custas de Barrigas Vazias” foram apresentados no Seminário sobre a Expansão da Indústria da Cana na América Latina, de 26 a 28 de fevereiro de 2007, em São Paulo.

Este dossiê « Agroenergia: Mitos e impactos na América Latina » está também disponível em inglês, espanhol e francês.

Fonte

Julian Xacult, Seminário sobre a Expansão da Indústria da Cana na América Latina, 26 a 28 de fevereiro em São Paulo.

Acordo de Paz e Fundo de Terras na Guatemala, Laura Saldivar Tanaka e Hannah Wittma, pesquisadoras do Instituto Food First.

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