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O silenciar das relações humanas

Infância, memoria e narrativa

Claudia Bandeira de Mello

10 / 2001

Minha maior inquietação como pessoa comprometida com a formação de seres cada vez mais humanos, reside na constatação fria do silenciar das relações, empreendido nas casas, nas praças, nas famílias, nas escolas, nos espaços de lazer. Temos cada vez menos acesso ao outro, ao contato direto, ao toque corporal, ao acolhimento e à expressão de sentimentos. Nossas crianças sofrem de solidão. Muitos são os apetrechos e as engenhocas eletrônicas com diversificação de suas babás; raros são os momentos de estar junto, de compartilhar vivências, de contar histórias de vida e partilhar sentimentos.

“(…) Impõem-se, ainda, ‘estilos de vida’ mais solitários, ‘cada um na sua’, cuja expressão cotidiana mais contumaz seria oferecida pela família assistindo à tevê, cada membro diante do seu próprio aparelho, em cantos separados da casa. Neste sentido, o cotidiano apresenta-se como refratário às experiências de desapontamento e negociação que são imanentes da relaçào entre adulto e criança, já que nem a criança basta ao que os pais esperam dela, e nem os pais dão conta do desejo da criança.”(Jobim e Souza, 1997,p. 104)

Não há constituição individual sem que se estabeleçam relações. Cria-se um hiato, que tentamos inutilmente preencher com aquisições externas a nós. Cria-se um silêncio que não é criativo, é neutro, é oco. Não tendo o outro que me reflete, quem vai me falar da minha existência?

“A sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando, contraditóriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas. (…) O mundo virtual criou um habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano.”(Boff, 1999, p.11)

Dentro dos padrões atuais, as famílias são pequenas, há poucos irmãos disponíveis e primos e tios estão afastados. A vizinhança virou privilégio de poucos, a rua virou sinônimo de perigo. Os avós… Por onde andam os avós? Tão importante e rica a relação com nossos avós, principalmente quando tem-se a possibilidade da ternura que esta relação caracteriza. E quanto ensinamento de lado a lado quando uma criança e um velho se entrelaçam… Que espaço damos a eles?

Na nossa prepotência de adultos sabemos que damos ou tiramos coisas daqueles que dependem de nós, ou seja, crianças, idosos, enfermos e outros. Que espaço nossa sociedade pós-moderna ou pós-industrial, nas palavras de Regni  (1), lhes tem aberto e legitimado?

Na nossa sociedade capitalista e utilitarista, idosos e crianças, que não contam enquanto produtores de riquezas, só serão valorizados se vistos numa perspectiva promissora de seu potencial consumidor.

Pessoas muito jovens e pessoas idosas carecem de cuidados, dedicação, atenção e disponibilidade, o que representa muito esforço para o nosso estilo apressado e superficial de ser. Segundo Boff,

“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.” (1999, p.33)

Tratamos de nos ‘desimpedir’ de suas solicitações, abrindo mão do grande aprendizado que essas fases da vida nos proporcionam, exatamente por estarmos mais livres dos ‘compromissos’ externos e mais focados em nossa intuição e sabedoria. No caso dos idosos essa sabedoria é construída a partir das lições da própria vida. No caso das crianças, é fruto da ainda não impregnação dos valores e ‘pré-conceitos’ que insensibilizam e muitas vezes cegam os adultos em plena fase de produção e envolvimento com o sistema no qual estamos imersos e do qual somos co-autores.

“Ao suposto ‘despreparo’ infantil para compreender a realidade, Walter Benjamin justapõe a tese de que a criança reconstrói o mundo a partir de seu olhar infantil; em relação ao idoso, afirma ser ele o guardião da tradição e da experiência.(…) As construções de um indivíduo ao longo da vida não desaparecem com a sua morte, mas transcendem-na ao se transformar em criação coletiva de uma época.(…) A idéia do entrecruzamento temporal parece ficar ainda mais clara quando pensamos que a criança e o idoso têm uma peculiaridade: a prática de recontar a história.(…) (Ambos) sabem que não se trata de uma repetição, mas de uma reapropriação ou recriação dos acontecimentos, ou melhor, uma forma de revigorar a tradição. ”(Pereira e Jobim e Souza, 1998, p.9, grifos meus )

Dentro da realidade urbana contemporânea, talvez a escola seja o último espaço coletivo privilegiado de tessitura destas relações. Qual aprendizado pode ser mais importante do que a lida com o outro, com o diferente, que me ajude a enriquecer e ampliar meu olhar diante do mundo? Queremos marcar o espaço escolar como espaço de memória, diálogo e liberdade. Memória do que sou e do que me constitui, impregnada na presença do mais velho que partilha seu aprendizado; diálogo que permite o entrelaçar de olhares, o aprendizado da escuta, a exposição e elaboração de sentimentos, conflitos e aprendizados; liberdade entendida como espaço de expressão de cada um, alimentada e reforçada pelo outro que acolhe, ajuda a ler e a significar o mundo.

1Raniero Regni, educador contemporâneo italiano, estudioso das relações que se estabelecem entre infância e sociedade. As idéias aqui referidas foram expostas na conferência intitulada: Infanzia e disagio della modernità: le risposte Montessori, em ocasião do Congresso Internacional Montessori, em 1996, em Roma, Itália.

Mots-clés

mémoire, école, famille, personne âgée, enfant


, Brésil

Commentaire

Contexto de Produção: fragmento de monografia apresentada ao Curso de Especialização em Educação Infantil/PUC-Rio, em 1999: “Inquietações Contemporâneas /Ensinamentos Ancestrais: Despertando nossas Memórias”.

Source

Autre

BOFF, L. Saber Cuidar: Ética do humano, Compaixão pela Terra. Petrópolis, R. J,Vozes, 1999.

JOBIM E SOUZA, S. A criança, o espaço e as novas tecnologias. In: CASTRO, L.R, GARCIA, C.A. e JOBIM e SOUZA, S.(orgs). Infância, Cinema e Sociedade. Rio de Janeiro: Ravil, 1997(p. 95 –115).

PEREIRA, Rita M. R. & JOBIM E SOUZA, Solange. Infância, conhecimento e contemporaneidade. In: KRAMER, Sonia & LEITE, Maria Isabel. Infância e Produção Cultural. Campinas: SP, Papirus, 1998.

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