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A natureza do desenvolvimento capitalista na agricultura

A conjuntura internacional da agricultura

João Pedro Stedile

03 / 2010

I. Antecedentes Históricos

1. Durante os últimos cinco séculos a humanidade passou a vivenciar o modo de produção capitalista como forma principal de organizar a produção e a solução para as necessidades das pessoas. Este modo de produção teve sua evolução econômica, iniciando-se com o capitalismo comercial, em especial na Europa. E, a partir daí, aplicou o colonialismo nos países do hemisfério sul para poder se apoderar das riquezas naturais e dos produtos agrícolas ali produzidos. A partir do século XVIII tivemos o capitalismo industrial, que introduziu os métodos fabris para a produção de alimentos e para o aumento da produtividade na agricultura. E, finalmente, nas últimas duas décadas do século XX, o capitalismo chegou em sua etapa atual, que é o domínio do capital financeiro, como forma principal de acumular e se reproduzir enquanto sistema. Essa etapa trouxe novas mudanças à agricultura mundial.

2. Durante esses anos todos, o processo de domínio do capital conviveu também com crises e avanços, que aumentavam ou diminuíam a exploração dos trabalhadores. Da mesma forma, como sempre, houve muita luta e resistência popular. E muitos povos experimentaram outras alternativas econômicas. Algumas vitoriosas, outras em transição ainda, e a maioria delas derrotadas pela hegemonia do capital. Mas, para efeito de nosso estudo preparatório à IV Conferencia Internacional da Via Campesina, vamos abordar aqui, apenas os aspectos econômicos, da forma como o capitalismo foi dominando a agricultura, em todo mundo. Para um estudo mais abrangente do desenvolvimento do capitalismo, devemos levar em conta as contradições engendradas pelo capital e, sobretudo, as inúmeras formas de resistência e de luta dos povos em todo mundo. Sobre isso, há suficiente literatura disponível.

3. A história já registrou e é de conhecimento público, o significado das diferentes formas de exploração desenvolvidas pelo capital em sua fase de capitalismo comercial, combinada com a dominação política do colonialismo dos povos do sul. O colonialismo impôs a organização da produção agrícola, através da chamada “plantation”. Essa forma de organizar a produção agrícola nos países mais pobres estava baseada em grandes fazendas, monoculturas, que cultivavam produtos que interessavam apenas à metrópole colonial e, pior, obtinham seus lucros baseados no trabalho escravo ou em outras formas perversas de exploração do trabalho nativo. Milhões de pessoas pagaram com suas vidas, em todo mundo, para viabilizar esse processo de acumulação do capital durante o colonialismo que, para maioria dos países, tardou até quatro séculos.

4. Durante o período do capitalismo industrial, a lógica de acumulação e as necessidades do capital se reproduzir impuseram novas mudanças também na forma de produzir e explorar o trabalho na agricultura. Assistiu-se então, em todo mundo, ao longo dos últimos cem anos, o capital industrial ir tomando conta da agricultura. Destaca-se como regras gerais de dominação do capital industrial sobre a agricultura:

a) A subordinação da agricultura à indústria. A agricultura passou a ser organizada pela lógica do lucro e a produção não era mais de alimentos, mas agora de “mercadorias”. Produz-se para o mercado interno e para o mercado externo, mas produz-se o que dá lucro.

b) O capital impõe à terra a lógica da propriedade privada. É nesse período que a terra, antes tratada pela maioria das civilizações como um bem da natureza a serviço do bem comum, agora, com o capitalismo industrial, é transformada em mercadoria. Uma mercadoria especial, pois apesar de não ser fruto do trabalho humano, o capital, impõe um preço. Um preço que representa a renda da terra acumulada, ou seja, seu potencial de lucratividade. Privatizaram o acesso à terra. E agora, sendo uma mercadoria, somente pode ter acesso a ela, quem tiver dinheiro, capital. Ao mesmo tempo, os pobres camponeses que ainda viviam sobre ela, são induzidos a vendê-la, a comercializá-la, como uma mera mercadoria. E a migrar para as cidades, transformando-se em mão-de-obra barata para as indústrias, fechando, assim, o ciclo perverso do capital.

c) A expulsão dos camponeses e das populações nativas. É nesse período que acontece, como conseqüência dessa lógica, o maior processo de migração que a humanidade viveu. E na maioria das nações, as populações deixaram de viver majoritariamente no meio rural para se aglutinarem nas grandes cidades.

d) A indústria introduz sua lógica na produção de alimentos. Como a maior parte da população passou a viver nas cidades, o abastecimento dos alimentos precisou ser transportado de longas distancias e ser armazenado. E assim, surgiu a agroindústria como forma de processar e conservar os alimentos. Os agricultores deixaram de produzir alimentos e passaram a produzir apenas matérias primas para as empresas agroindustriais.

e) O capitalismo industrial busca o aumento da produtividade física da terra e a produtividade do trabalho dos agricultores, introduzindo na agricultura os métodos da divisão do trabalho e o desenvolvimento tecnológico da indústria. Assim, nesse período, se introduz os insumos produzidos pelas indústrias, como os adubos químicos, os venenos, os agrotóxicos e a mecanização agrícola. E para viabilizar a compra de todos esses bens da indústria, se desenvolve o crédito rural. Nascem, assim, as grandes fazendas, modernizadas, com muito capital investido e pouco trabalho.

5. Essas mudanças tecnológicas foram apregoadas pelo capital como sendo uma “revolução verde”. Na verdade, não foi, nem revolução, pois somente aumentou a pobreza e o sacrifício das pessoas que viviam no meio rural; e nem “verde”, pois se revelou altamente perversa para o equilíbrio do meio ambiente e para conservar nossa natureza. Foi uma “contra-reforma marrom do capital contra os camponeses”!

II. O domínio do capital financeiro sobre a agricultura

6. Nas últimas duas décadas, assistiu-se a uma crise do modelo do capital industrial, provocada por várias razões, que o espaço não permite explicar, e o advento da hegemonia do capital financeiro, como forma predominante do capital acumular, explorar e se reproduzir em todo mundo.

7. O casamento do capital financeiro com as novas tecnologias desenvolvidas na informática, na micro-eletrônica, na química fina, que revolucionaram o mundo do trabalho, trouxe como conseqüências dois processos complementares: a reprodução do capital através da aplicação do dinheiro em empréstimos para obter altas de juros e a compra de ações de empresas lucrativas, que assim, tiveram que dividir seus lucros com o capital bancário. Por outro lado, essa forma volátil de capital permitiu que esse capital do hemisfério norte, controlado por grandes empresas, bancos e monopólios, circulasse de uma forma muito rápida, quase instantânea, em todos os países do mundo.

8. Assim, as conseqüências naturais da lógica de funcionamento do capital financeiro, foram:

a) O aumento da concentração do capital em grandes empresas transnacionais que se constituíram em verdadeiros oligopólios, controlando grandes setores da produção, do comércio, dos serviços e das finanças concomitantemente. Assim, hoje, as 500 maiores empresas transnacionais, com suas sedes nos Estados Unidos, Europa e Japão, controlam 58% de todo o PIB mundial, mas empregam apenas 1,8% da população economicamente ativa. Controlam uma riqueza superior à soma do PIB dos 133 países mais pobres.

b) A globalização do capital: uma mesma empresa, seja industrial ou de serviços, atua em quase todos os países do mundo e procura realizar seus lucros, aproveitando-se das diferenças entre os países e da liberdade total para agir no comércio, nos serviços e nos investimentos.

9. Essa lógica das grandes empresas transnacionais, que passam a controlar diferentes setores de atividades e estão articuladas com o capital financeiro internacional, chegou também à agricultura em todo mundo. Empresas como: Monsanto, Cargill, Du Pont, Sygenta, Norvartis, Nestlé, Danone, Bunge, Wal Mart, Carrefour, Makro, etc. estão presentes na maioria dos países, em todos os continentes.

10. Quais foram as principais mudanças provocadas por essa forma de dominação, na nossa agricultura?

a) As empresas passaram a dominar o comércio agrícola mundial, em especial dos grãos, e passaram a controlar os mercados nacionais e impor preços internacionais, independente dos custos de produção locais e impedem que os estados nacionais pratiquem políticas públicas, de interesse social, na área de armazenagem e preços.

b)Um processo acelerado de concentração e desnacionalização das empresas agroindustriais, em todos os países.

c) A padronização da comida. E de má qualidade. O pior desse processo de concentração do controle das agroindústrias é a tentativa, agora, de padronizar os alimentos em todo mundo. Para facilitar sua fabricação, sua internacionalização e assim aumentar os lucros das empresas que controlam. Esse processo de padronização de alimentos na humanidade, em todo o mundo, coloca em risco nossa cultura, nossos hábitos e, inclusive, a biodiversidade do planeta.

d) A exclusão do Estado e de políticas nacionais protetoras da agricultura e dos agricultores: na lógica de internacionalização do capital financeiro, o Estado não tem mais papel algum. Eliminam-se as funções do setor publico agrícola, para dar lugar ao mercado. O mercado é apenas um eufemismo para esconder os interesses do capital. E assim, em todo mundo, percebe-se que o Estado se retira da aplicação de políticas públicas de proteção da agricultura. Não há mais políticas públicas de preços, de armazenagem, de pesquisa, de assistência técnica, e de credito rural para os agricultores e camponeses.

e) O capital faz investimentos para o controle total das novas técnicas a serem aplicadas na produção agrícola. Todas as grandes empresas estão fazendo investimentos para dominarem a biotecnologia e a nanotecnologia e, sobretudo, estão se aproveitando dessas técnicas para tentar impor novas variedades transgênicas, sobre as quais podem impor a propriedade privada, intelectual e depois cobrar royalties. Para tanto, também precisam ter acesso à propriedade privada da biodiversidade que existe no planeta.

f) Por último, o capital internacional tenta, através de suas empresas, controlar também a propriedade privada da água potável, em todo mundo. Como a água potável parece ter se transformado num bem finito, os capitalistas sonham em obter lucros incessantes.

11. Para que esse processo de acumulação e dominação do capital, que está sendo hegemonizado pelo capital financeiro e suas empresas transnacionais, dê resultados, eles precisam acima de tudo, de liberdade total de funcionamento. A palavra neoliberalismo representa essa necessidade ideológica do capital. Eles precisam de uma NOVA liberdade, total, para que o capital possa fazer o que quiser com as terras, com o comércio, com o serviço, com os preços, com os investimentos, sem atropelos de políticas estatais, de políticas nacionais e, muito menos, de movimentos camponeses.

12. Para levar adiante esse projeto de dominação, o capital internacional precisa então de proteção jurídica, ou seja, de acordos internacionais que lhes garantam essa liberdade de atuação em todos os países, em todos os setores, e inclusive na agricultura. Essas garantias estão sendo propostas através de vários mecanismos a serviço dos interesses do capital. Em primeiro lugar, através da atuação política da Organização das Nações Unidas - ONU, e dos acordos da Organização Mundial do Comércio - OMC, que são manipulados pelo grupo dos 7 países mais ricos. Depois, nos acordos hemisféricos, seja na União Européia, seja na ALCA – Área de Livre de Comercio das Américas, ou na Área de Livre Comércio da Ásia. Ou também através de acordos e imposições bilaterais, que são realizados com freqüência entre países ricos e países pobres, que se submetem a toda e qualquer condição. São usados, também, organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional - FMI , o Banco Mundial e, à vezes, até a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação - FAO, para impor a vontade do capital.

13. Quando os acordos jurídicos não são suficientes, quando aqueles instrumentos não conseguem garantir a vontade do capital transnacional, resta então a militarização das ações, com agressões da guerra desapiedada, que cobra em vidas humanas a sanha do lucro. Por trás da guerra do Afeganistão, da Palestina, do Iraque, da Guerra civil da Colômbia e da tentativa de derrubar o Presidente da Venezuela, estão as necessidades do capital controlar a energia (do petróleo), os mercados e a biodiversidade e assim, se renovar, poder acumular e sair de sua crise.

14. Evidentemente que esse processo em curso representa a vontade do capital. Mas ele não está consolidado ainda. Estamos no meio dessa conjuntura, e certamente haverá muita resistência em todos os países. Mas, por outro lado, sabe-se que se esse modelo conseguir se impor já podemos antever conseqüências sociais de suma gravidade, tais como:

a) não haverá mais necessidade de realizar reformas agrárias e dividir terra. Eles vão buscar o aumento da produção e da produtividade através do controle de grandes empresas sobre as fazendas e o processo produtivo;

b) a terra deixa de ser um elemento fundamental para acumulação de capital e passam a controlar o comércio, os serviços, as agroindústrias e, sobretudo, a tecnologia;

c) o aumento da pobreza e da desigualdade social em todo mundo;

d) a inviabilização da agricultura familiar e camponesa e um processo espantoso de êxodo rural em todos os países do mundo.

III. As perspectivas do movimento camponês internacional nessa conjuntura

15. A lógica de dominação internacional do capital traz também, dentro de si, muitas contradições, que agora cabe aos movimentos camponeses de todo mundo saber tirar suas lições e buscar novas formas de articulação e de luta, para poder enfrentar essa nova conjuntura. Esse é, certamente, o grande desafio da Via Campesina enquanto articulação internacional: descobrir as mudanças de funcionamento do capital e suas empresas, para poder desenvolver novas formas de luta, nos diversos movimentos, nos países e a nível internacional.

16. Essa etapa do capital financeiro e sua dominação sobre a agricultura traz as seguintes contradições e desafios para os movimentos camponeses:

a) A globalização do capital que impõe os mesmos métodos de exploração em todos os países obriga os movimentos camponeses a também terem estratégias de articulação internacional, rompendo assim seus métodos corporativos e localizados.

b) Os inimigos dos camponeses, agora, são os mesmos em todo o mundo: as empresas transnacionais e os organismos internacionais que atuam para desenvolver a lógica do capital.

c) Os problemas que temos nos países, com preços, mercado, etc., têm sua origem na dominação do comércio internacional pelas empresas.

d) As lutas e mobilizações nacionais precisam incorporar a defesa de um novo tipo de reforma agrária. Não mais apenas a reforma agrária clássica, que distribuía terra. Agora, uma reforma agrária precisa distribuir a terra, instalar agroindústrias sob forma cooperativada, defender a soberania alimentar de nosso povo, defender o direito de produzir com nossas próprias sementes, desenvolver novas técnicas agrícolas adequadas à economia camponesa e ao equilíbrio do meio ambiente, desenvolver novas formas sociais de produção na agricultura e casar necessariamente com a democratização da educação, da escola no meio rural.

e) Se o capital se internacionalizou e usa métodos internacionais os movimentos camponeses também precisam internacionalizar suas formas de luta e desenvolver novas e criativas formas de enfrentar o inimigo comum.

f) Desenvolver formas de lutas sociais que envolvam outros setores da classe trabalhadora e, sobretudo, que ganhe apoio de toda a sociedade.

Mots-clés

agriculture, réforme agraire


, Brésil

dossier

Mouvement des travailleurs Sans-Terre

Notes

O texto que apresentamos são as notas preparatórias do membro da coordenação nacional do Movimento Sem Terra – MST e Via Campesina Brasil João Pedro Stedile, que serviu de subsídio para os trabalhas realizados na IV Conferência Internacional da Via Campesina, realizada em junho de 2003, Brasil.

João Pedro Stedile, mestre em economia pela Universidade Autônoma do México – UNAM, nos apresenta um sintético estudo do desenvolvimento do capitalismo na agricultura e suas formas mais contemporâneas, principalmente a financeira. Ele analisa ainda as consequências dessa lógica econômica para os camponeses, para a reforma agrária e levanta os desafios que essas organizações, à nível internacional, terão que enfrentar.

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