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Faces e demandas da pobreza no Brasil

Francisco Menezes

06 / 2008

No segundo semestre de 2006, o Programa Bolsa Família (PBF) atingiu a meta de transferência de renda para 11 milhões de famílias, contemplando algo estimado em 45 milhões de pessoas. Presente em todos os municípios brasileiros, o programa tem como marcas a regularidade e a pontualidade do depósito na conta de cada um(a) de seus(suas) titulares. Com dotação orçamentária, em 2008, de R$ 10,5 bilhões, teve ampliada a faixa etária de 15 para 17 anos relacionada ao benefício adicional repassado às famílias com filhos(as) que freqüentam a escola, o que estende o pagamento a outros 1,75 milhão de jovens.

Em que pese ter sofrido uma acirrada crítica desde que surgiu, o fato é que a unificação de quatro programas de transferência de renda, em outubro de 2003 – que resultou no Bolsa Família –, e a sucessão de medidas de ajuste e aperfeiçoamento dessa política consolidaram aquele que hoje é considerado um dos mais importantes programas do gênero em todo o mundo.

Além disso, a redução mais recente da desigualdade, em patamares que ainda não tinham sido experimentados no Brasil, tem como um dos fatores explicativos a renda transferida para as pessoas mais pobres. Segundo Ricardo Barros, Miguel Foguel e Gabriel Ulyssea, “os fatores responsáveis por tal redução acentuada na desigualdade são múltiplos, o que deve favorecer sua continuidade”. Os mesmos autores concluem que a queda recente na desigualdade deve ser atribuída fundamentalmente a:

(a) redução da heterogeneidade educacional da força de trabalho e dos correspondentes diferencias de remuneração;

(b) reduções nas imperfeições no funcionamento do mercado de trabalho; e

(c) expansão e melhor focalização das transferências públicas de renda (Barros; Foguel; Ulyssea, 2006).

Outro estudo, de Fábio Veras, Serguei Soares, Marcelo Medeiros e Rafael Osório (2006), revela que a transferência de renda com o PBF, a partir de sua criação, foi responsável por 21% da queda da desigualdade em 2004, atrás apenas da renda proveniente do salário e das aposentadorias e pensões de até um salário mínimo.

Críticas e denúncias

Em contraposição, se forem observadas as críticas mais enfáticas dirigidas ao programa – que encontram em alguns órgãos da grande imprensa seus principais porta-vozes –, constata-se que seguiram uma ordem temporal, cada uma substituindo a anterior ao fim de um período, mas sempre negando o programa como parte de uma política social adequada para o Brasil.

Primeiro, foi a denúncia de que entre os(as) beneficiados(as) não estavam as pessoas mais pobres. Com o aperfeiçoamento do Cadastro Único, o encaminhamento do processo de recadastramento e a formação de uma rede pública de fiscalização do programa, ao lado da incorporação acelerada de novas famílias, o problema perdeu força jornalística.

Algum tempo depois, apareceu a segunda crítica, na qual as condicionalidades da saúde e da educação não eram acompanhadas suficientemente. Com essa crítica, a afirmação de que o programa gera acomodação,com titulares não querendo mais trabalhar. Essa fase das críticas também foi se atenuando. Mas, agora, em seu terceiro momento, desponta a condenação ao tipo de uso do recurso repassado feito pelas famílias, com base na constatação de que cresce a aquisição de eletrodomésticos por algumas pessoas portadoras do cartão do PBF.

Ao lado de todas as críticas, uma adjetivação permanente: o programa é assistencialista. E se condena o uso de recursos volumosos com transferência de renda, em vez de despendê-los na educação das camadas mais pobres da população – viabilizando, assim, a capacidade de disputa por postos de trabalho em um mercado cada vez mais exigente. Sobre isso, vale uma pronta-resposta, pois a visão revela profundo desconhecimento da realidade brasileira.

Para quem trabalha com os temas da pobreza e da desigualdade, não há nenhuma dúvida sobre a importância da educação para transformações mais profundas e duradouras. A questão é que a carência da educação não é a única barreira para o acesso aos direitos que toda a população deve ter. Aliás, no quadro de grande vulnerabilidade que ainda predomina no Brasil, para poderem estudar, os(as) alunos(as) precisam se alimentar, se vestir, morar em condições dignas, ter assistência de saúde e transporte para chegar à escola. E parte considerável desse contingente apresenta grandes dificuldades perante essas condições.

A educação é um entre muitos direitos negados à população mais pobre. É indispensável que se garantam todos os direitos. Porém, para os críticos, garantir um só direito para a população mais pobre já é muito. Garantir todos os direitos, nem pensar.

O exame sobre essas críticas pode ser feito com base na discussão de parte dos resultados do programa. Importa, também, desvendar algumas questões ainda não presentes no debate. Utiliza-se, para isso, o referencial da pesquisa realizada pelo Ibase, Repercussões do Programa Bolsa Família sobre a Segurança Alimentar das Famílias Beneficiadas.

 

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Vulnerabilidades sociais

O PBF faz parte de uma política social voltada para o enfrentamento da pobreza no país. O artigo nacional desta edição trata da questão (p. 8), demonstrando os limites da identificação das pessoas mais vulneráveis apenas pela renda.

O fato é que a pobreza no Brasil é complexa, com muitas caras e diferentes demandas. Existem as diferenças ditadas pelas especificidades regionais e, mesmo em alguns casos, locais. Além disso, a pobreza urbana é diferente da vivida na área rural.

Outro aspecto é que, na percepção que as próprias pessoas pobres têm de si, a pobreza se identifica e se mede pelas vulnerabilidades, que podem ser muitas. Família monoparental, doença crônica e outras limitações físicas permanentes, analfabetismo, residência distante de serviços, estado precário da habitação e muitos outros determinantes que, combinados com a baixa renda, caracterizam o risco permanente de estar em uma situação de carências de necessidades essenciais.

Adotam, assim, concepção ampliada de pobreza, ao mesmo tempo que assumem um significado relativo dessa mesma pobreza, comparando as capacidades de satisfação das necessidades determinadas socialmente no espaço de convívio.

Na interpretação do Ibase, esse é um desafio para o programa, visto que os(as) próprios(as) beneficiados(as) encontram dificuldades em compreender os critérios de inclusão e de definição do valor a ser repassado, restrito à renda per capita familiar e à presença de filhos na escola. Uma situação que se agrava com o fato de essas famílias, em sua maioria, não possuírem uma renda estável, com parte significativa tendo seus ganhos obtidos em biscates.

O que fazer diante disso? Criar um indicador de vulnerabilidade que permita às famílias, com diferentes fragilidades, estarem incluídas? Haveria muita dificuldade quanto à disponibilidade dos dados para a medição do grau de vulnerabilidade dessas famílias. Porém, mais difícil e dispendioso seria verificar a veracidade das informações, fazendo retornar os questionamentos quanto à justiça de algumas pessoas estarem incluídas e outras não. Entretanto, em nosso ponto de vista, não deve ser repassada ao PBF a responsabilidade de correção das inúmeras vulnerabilidades que, historicamente, atingem os grupos socialmente mais frágeis.

O Bolsa Família é um programa de transferência de renda para as famílias cujas rendas estão abaixo de determinado patamar. Dentro da política social atualmente empregada, possui grande importância, mas não pode assumir responsabilidades de enfrentamento de problemas que outros programas e outras ações, alguns de alcance universal, devem responder. É necessário, sim, aprimorar a capacidade de aferir a renda declarada pelos(as) beneficiados(as) com o maior grau de acerto possível e, também, informar, de maneira clara, os critérios adotados para a inclusão e a fixação do valor a ser recebido.

Direito?

São muitas as dificuldades para acompanhar o cumprimento das condicionalidades, e é necessário manter, e mesmo intensificar, o esforço para que se disponha das informações acerca da freqüência escolar e do comparecimento periódico nas unidades de saúde pelas famílias que fazem parte do programa. Mas não para punir aquelas que não cumprem os compromissos.

Aliás, apesar das normas do PBF se anunciarem duras perante inadimplências, na prática, a exigência do governo tem sido bem mais branda. Os acompanhamentos sobre dados que sejam fidedignos desses compromissos podem permitir verificar dificuldades das famílias no cumprimento, com possibilidade de ser dado o devido apoio por órgãos governamentais habilitados para a superação dos problemas. Ou, não menos importante, quando identificada a falta da oferta do serviço de saúde ou educação, o poder público oferecer a possibilidade de correção da carência.

Consideramos, ainda, que a classificação dos compromissos como “condicionalidades” é inadequada. Como uma das conseqüências, estimula a burla das informações acerca de seu cumprimento pela justa preocupação das pessoas responsáveis pela informação em não prejudicar as famílias que não conseguem cumprir as obrigações. Melhor será criar incentivos para que os serviços sejam utilizados e garantir as possibilidades de apoio quando surgem dificuldades.

Trabalho e emancipação

O que foi observado na pesquisa do Ibase desmentiu, cabalmente, a hipótese de que parte dos(as) titulares se acomodam com o recurso recebido, deixando de trabalhar ou buscar emprego. Ao contrário, na etapa qualitativa da pesquisa, a quase totalidade das pessoas participantes declarava o desejo de um emprego, preferencialmente com carteira assinada, quando era perguntada sobre as principais aspirações.

Na etapa quantitativa, o pequeno número que declarou ter deixado o emprego após o ingresso no programa afirmou tê-lo feito pelas condições degradantes em que trabalhava ou pelo baixíssimo salário que recebia. O fato, também, é que o valor repassado pelo programa é insuficiente para o suprimento das necessidades básicas, obrigando a que se busque outros meios para garanti-lo. Segundo apurado na pesquisa, o valor médio mensal repassado aos(às) beneficiados(as) é de R$ 73.

Na etapa qualitativa, as titulares que participaram de grupos focais classificavam freqüentemente o repasse como ajuda, uma complementação da renda que as famílias precisavam dispor. Na pesquisa, constatou-se que 46% dos domicílios com famílias contempladas pelo programa tiveram renda mensal inferior a R$ 380 (salário mínimo durante a coleta de dados), e 32,5% tiveram renda entre R$ 381 e R$ 570. Ainda assim, a incorporação no programa tem adquirido grande significado para essas famílias, particularmente no acesso à alimentação, cuja repercussão é notória. Observouse o aumento na quantidade e na variedade dos alimentos consumidos, especialmente cereais, feijões, carnes, leite, ovos e, em menor proporção, frutas verduras e legumes – embora também tenha crescido o consumo de biscoitos, açúcares, doces e refrigerantes.

Igualmente, aumentou a compra de alimentos para crianças e o número de refeições por dia. Outros gastos, como os realizados com material escolar, vestuário e remédios, destacam-se na utilização dos recursos do PBF. Embora não apareça com peso significativo, ocorre também o uso do dinheiro mensal repassado para a aquisição de eletrodomésticos, geralmente em prestações mensais. Parece absurdo o questionamento feito a essa escolha, sendo revelador da nãoaceitação, por parte dos próceres da crítica, do acesso pelas pessoas mais pobres ao mercado desses bens.

Não menos importante tem sido o significado da garantia regular de uma renda adicional ao orçamento doméstico. Dada a pontualidade com que essa renda é repassada, viabiliza-se o planejamento dos gastos familiares, o que significa um avanço importante para o melhor uso dos escassos recursos. Na pesquisa do Ibase, ainda foi constatado, na aquisição de alimentos, o uso do fiado como meio de realizar as compras com a garantia do cartão. Mas o predomínio das compras em supermercados e sacolões confirmou a tendência à busca por preços mais baixos, dentro de um planejamento que visa ao menor dispêndio.

Por outro lado, a certeza do dinheiro depositado em data certa a cada mês vem transformando o cartão de saque do PBF no equivalente a um cartão de crédito, que abre a possibilidade para crediários e aquisição de bens duráveis – incluindo eletrodomésticos, materiais para reforma nas habitações e, mesmo, compras de instrumentos de trabalhos, tanto na área urbana como rural. Vale ressaltar, também, o significado da mulher ser a titular preferencial do cartão. Isso traz expressivo reflexo sobre a importância da figura feminina no domicílio e no meio em que vive.

Desafios a enfrentar

Na análise sobre os efeitos do PBF, é necessário considerar seus limites e, como já foi assinalado, não fazer dele uma pantomima capaz de responder por todos os papéis que devem ser desempenhados por outros programas e outras ações da política social. A perspectiva que não pode ser abandonada é a construção de um conjunto de iniciativas articuladas com o programa, fazendo uso dos dados do Cadúnico (cadastro que origina a seleção das famílias a serem incorporadas), que apontem para a promoção de direitos desse grupo social e que construam as condições para sua emancipação.

Nesse sentido, a criação da Secretaria de Oportunidades, no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), sugere a disposição do governo em tomar esse rumo. Claro está que essa disposição não pode ficar restrita a um ministério, e que os resultados dependerão muito da geração de condições econômicas e sociais, como aquelas que se dão no âmbito do trabalho, com crescimento do emprego formal; do desenvolvimento agrário, com soluções para o problema fundiário e o fortalecimento da agricultura familiar; da saúde,

com acesso crescente das pessoas mais pobres aos serviços nessa área, na redução dos grandes déficits ainda existentes nas condições sanitárias e de moradia; da educação, com a consolidação das medidas que seguem a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

A diversidade de situações que está por trás das vulnerabilidades sociais no Brasil não recomenda soluções únicas. O que pode fazer a diferença, no salto a ser dado para quebrar o ciclo vicioso de geração de pobreza e desigualdade, é a capacidade de execução de múltiplas iniciativas, ajustadas à realidade das várias “caras” da pobreza e com um sentido sistêmico, ou seja, com uma gerência capaz de articulá-las de forma a extrair dali resultados com o maior potencial possível. Há que se fazer um esforço para o funcionamento efetivo de órgãos interministeriais já existentes, como as câmaras social e de segurança alimentar, que poderão garantir a articulação entre os diferentes programas e as diversas ações. Desafio maior ainda será fazer valer a capacidade de trabalho articulado das diferentes esferas federativas (federal, estaduais e municipais), desarmando as disputas político-eleitorais que, geralmente, criam dificuldades intransponíveis para o funcionamento desse trabalho.

Por fim, não é menos decisiva a participação social na construção do processo de emancipação. Seja a partir de conselhos ou de outras instâncias com participação de representações da sociedade, há que se realizar uma transição do papel a elas hoje delegado, que deve passar a ser muito mais de formulação de demandas e propostas para essa política do que o exercício de fiscalização, sem dispor das condições para exercê-la.

Mots-clés

sécurité alimentaire, pauvreté, lutte contre la pauvreté, politique sociale, revenu minimum


, Brésil

dossier

Sécurité alimentaire, revenu et politiques publiques au Brésil : le programme Bolsa Familia en question

Notes

REFERÊNCIAS

BARROS, R. P.; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. (Orgs.). Desigualdadede renda no Brasil: Uma análise da queda recente. Brasília, DF: Ipea, 2006. v.1.

VERAS, F.; SOARES, S.; MEDEIROS, M.; OSÓRIO, R. Programas de transferência de renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade e a pobreza. Brasília, DF: Centro Internacional de Pobreza, Pnud/Ipea, 2006.

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