español   français   english   português

dph participa da coredem
www.coredem.info

buscar
...
diálogos, propuestas, historias para uma cidadania mundial

Organização, poder e apoio político em Caracas, Venezuela

Steffen Lajoie

2009

Limitações e obstáculos da vida em mega- assentamentos precários e a necessidade de recuperar a cidade

A Carta pelo Direito à Cidade, articulada por Habitat International Coalition e apoiada por uma ampla rede internacional, busca o reconhecimento do papel e da participação dos residentes, grupos comunitários e movimentos sociais (Brown e Kristean 2009). Em 1999, a Venezuela adotou o direito à cidade na sua Constituição, o que inclui o direito à moradia segura e digna, o direito à participação nos processos democráticos e, o que é ainda mais interessante, o direito a formar unidades de planejamento locais, bem como o controle da tomada de decisões no desenvolvimento e no planejamento. Neste artigo se fará um exame do contexto dos assentamentos precários urbanos e dos movimentos sociais antes da obtenção dos direitos legislativos e constitucionais. Em seguida se analisará o efeito catalisador que significaram as mudanças constitucionais e, especificamente, como deram suporte para a criação dos Comitês de Terra Urbana (CTU). Finalmente, serão examinados os múltiplos efeitos gerados pelo apoio do governo às organizações comunitárias locais e à redução da pobreza.

Contexto, realidades em terreno: a cidade informal e a luta pela inclusão

À exemplo de muitas cidades de países de baixa renda, um passeio pelas ruas de Caracas nos levará ao encontro de um grande número de construções e uma enorme variedade de contextos. Estima-se que entre 60 e 70% das habitações localizam-se em áreas de alto risco (inundações, deslizamentos de terra e delinqüência), em condições muito mais precárias do seria considerado adequado ou seguro por aqueles que lá vivem (Antillano 2005:. 207-208; Núñez n.d). A zona “formal” da cidade se estende sobre um vale estreito. Os moradores destas áreas compreendem desde pessoas muito ricas até muito pobres. Além disso, podem-se observar assentamentos ilegais e amontoados onde quer que haja espaço: ao lado de canais de irrigação, em edifícios abandonados e em espaços urbanos sem uso e em ruínas.

Contudo, o que circunda a cidade é ainda mais impactante. Embora planejadores e arquitetos tenham lutado para criar um distrito nacional atrativo, os assentamentos informais expandiram-se pelas encostas íngremes ao redor da cidade, dando lugar a um dos assentamentos precários mais antigos e grandes da América Latina (Núñez n.d.; Ellner 2004: 120-130). O contraste é forte, impressionante e pouco comum. Ele também nos faz questionar quem está construindo as cidades do presente. Como e porque os urbanistas, designers e visionários políticos conseguiram excluir os mais pobres da cidade, a maioria da população, é uma longa e interessante história (ver Ellner 2004). Basta dizer que os assentamentos precários localizados em Caracas e seus arredores são definidos pela exclusão econômica e física da própria cidade (Antillano 2005: 206; Cariola et al 2005b: 22-25; Lajoie 2006:5-6). Os bairros de Caracas são pequenas cidades hiperorgânicas: construíramse casas umas sobre as outras antes que houvesse vias de pedestres, acesso para veículos, água potável, serviços de saneamento, eletricidade e sistema de esgoto.

Estes assentamentos continuam aparecendo e expandindo-se ao redor das zonas periurbanas de Caracas. Antillano (2005) defende o desenvolvimento dos movimentos sociais dos últimos vinte anos, antes da constituição de 1999, como caótico e desorganizado. Devido aos muitos obstáculos culturais e institucionais, os grupos comunitários enfrentavam dificuldades que pareciam invencíveis. Contudo, seriam estes mesmos grupos e ativistas os que no futuro levantariam a bandeira dos CTU para construir algo novo tomando como base sua própria experiência.

Reforma: transformando leis e processos, obtendo acesso

A constituição de 1999 colocou em andamento grandes projetos a longo prazo na Venezuela. Especificamente, definiu a moradia como um direito humano. Considerando a realidade do país, esta declaração poderia soar descarada e pouco realista. Contudo, na constituição também se promove a participação popular, através do artigo 26, e são instaurados conselhos de planejamento local, por meio do artigo 182 (Cariola e LaCabana 2005b: 27-29).

Estes dois artigos foram logo apoiados pelo que hoje de conhece como o famoso Decreto 1666, o qual identifica os Comitês de Terra Urbana como entidades responsáveis pela regularização eficiente, pela posse da terra assim como pela participação e organização comunitárias (1).

A transformação da Lei e os Processos

A constituição: Acorda-se um referendo nacional em 1999, o qual reconhece a moradia digna como um direito humano.

Artigo 26: Promove-se a participação popular para o desenvolvimento dos municípios.

Artigo 182: Outorga-se o poder às Câmaras de Planejamento Locais para que atuem como intermediários entre os cidadãos e os organismos públicos.

Decreto 1666: regularização constante da terra, participação comunitária e designação da posse da terra através dos CTU (Cariola et al, 2005a: p.113)

Os CTU: Grupos de 1-200 lares registraram-se junto a dirigentes eleitos a nível local, paroquial, metropolitano e nacional. Trabalham para facilitar os processos de posse e de regularização, pressionando para atingir mudanças legais, e no trabalho comunitário.

A OTN: Fornece assistência técnica e profissional aos CTU; foi fundada pelo Governo Central.

O MVH: Ministerio de Vivienda y Hábitat (Ministério de Habitação e Hábitat). Fornece financiamento aos projetos CTU e mantém seus próprios projetos, às vezes interrompendo o programa habitacional (Holland, 2006, obtido em Lajoie 2006: 29)!!!

Para o funcionamento do decreto foi fundamental a criação da Oficina Técnica Nacional – OTN (Escritório Técnico Nacional) –, a qual oferece apoio técnico ao processo de regularização das terras, através da geomensura, regularização e desenvolvimento de mapas cadastrais. A OTN é também um nexo entre o Ministério de Vivienda y Hábitat (Ministério de Habitação e Hábitat) (MVH), uma entidade do governo central, e os CTU. Isso se refere não apenas às políticas e ao planejamento, mas também ao financiamento. Todos estes elementos são ingredientes que compõem o prato. O desenvolvimento, a mobilização e a organização criaram a receita da transformação urbana integrada (Holland 2006).

Vitórias: Segurança de posse, melhorias na moradia, organização e influencia política

O movimento Bairro, criado antes eleição de Chavez, e a constituição de 1999 sentaram, de muitas formas, as bases para o que hoje é uma revolução habitacional (Antillano 2005: 207-208). A legislação que partiu de dentro e que apoiou a constituição outorgou a legitimidade e os mecanismos necessários para abrir o acesso aos processos e estruturas dentro do quadro formal da cidade.

Como conseqüência, os grupos comunitários foram capazes de constituirse em grupos de CTU, ao passo que regularizaram a terra onde viviam, obtendo a posse legal de suas propriedades. Construir este nível de organização não é uma conquista menor. Contudo, o acesso à posse da terra como comunidade cria um nível de participação e abre as possibilidades para um planejamento comunitário futuro. A OTN afirma ter entregado, nos seis primeiros anos de trabalho, 350.000 títulos de propriedade que beneficiaram cerca de 520.000 famílias, segundo o Centro de Direito à Moradia e contra os Despejos (COHRE na sigla em inglês, 2008: 3-5).

O apoio que partiu das camadas mais baixas na Venezuela atuou como catalisador dos CTU, que organizaram gente a nível paroquial, regional, metropolitano e nacional. Destas assembleias surgiram novas propostas, tais como oficinas de educação e capacitação para os membros e representantes dos CTU, a criação dos Centros de Participação para a Transformação do Hábitat (CPTH) e os Pioneiros, a exemplo do surgimento de novas propostas para o MVH com o objetivo de criar uma política habitacional mais integrada (2). Os CPTH estão envolvidos na criação de novos assentamentos, no que trabalham junto ao governo com o fim de construir moradias e facilitar um novo desenvolvimento das terras desocupadas ou mal aproveitadas, atuando como agentes principais de investimento. Os Pioneiros foram implementados pelo CTU para tratar questões relacionadas à aquisição da terra e dos projetos de desenhos de construções novos e antigos. Ultimamente, os CTU propuseram a Lei Especial de Regularização Integral da Posse da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares. Esse será um grande passo que servirá para tratar questões tais como os conflitos institucionais, o incremento da burocracia, a aceleração do processo de regularização e a criação de novos instrumentos tais como o Banco da Terra Urbana (COHRE 2008:4).

O resultado final mostra que não somente se deve ir de encontro aos processos e a transformação do direito à moradia e políticas habitacionais, mas também se devem buscar novas formas de produção da cidade, que considerem desde os espaços pessoais (o lar) até a esfera pública e privada (ruas, parques, espaços abertos e públicos). A interrogação hoje em dia é até onde chegará a influência dos CTU com respeito à cidade e qual será o resultado do debate acerca do socialismo e da cidade.

Observações: a luta comunitária alcança novas dimensões – reconhecimento constitucional do direito à cidade

O movimento habitacional é um exemplo da boa prática, pois demonstra a eficácia da mobilização civil para chegar aos níveis institucionais. O movimento cívico de direitos habitacionais em Caracas tem surtido efeitos em diferentes níveis da cidade:

• novas definições das necessidades dos pobres;

• enfoques inovadores para a regeneração urbana e o desenho, além de novidades relativas a integração dos bairros no processo habitacional;

• reformas estatais e descentralização da moradia, posse e regularização da terra;

• tomada de decisão e supervisão de projetos de maneira participativa e multissetorial, que provenham do povo.

• novas associações entre o setor público e o privado;

• e, como resultado final, uma dimensão que foi vista por todo o país.

Além disso, este caso ilustra a importância que as políticas sejam provenientes do povo, com o objetivo de que satisfaçam as necessidades e demandas da comunidade que se mobiliza. Neste sentido, a criação de um mecanismo para outorgar a posse da terra aos CTUs transformou-se no catalisador construído sobre a base do capital social dos grupos comunitários, o que permitiu que estas estratégias de sobrevivência e seus resultados dessem um impulso significativo ao movimento. Os imensos assentamentos informais estão se transformando em proprietários da cidade mediante sua participação direta na criação da cidade a nível de bairro e a nível nacional. Os CTU e sua experiência estão na vanguarda da política e dos movimentos sociais que os afetam. Estão constantemente consolidando precedentes, além de mobilizar-se e organizar-se de maneira bastante desenvolvida. Se estivessem servindo como padrão, certamente seriam um bom parâmetro. Para os CTU a luta ainda continua, porém já têm tomado as medidas necessárias para que se reconheça seu direito à cidade.

1 Estes artigos também apoiam a formação de várias comissões a nível de bairro, incluindo eletricidade, saúde, água e serviços de saneamento, assim como de nutrição. (Holland 2006, Cariola et al 2005),
2 Proposta de documento para o Ministério: Assinalar o fiasco da política habitacional: não é um problema humano, mas sim político causado por enfoque quantitativo que ignora o hábitat; concentração exclusiva na construção de novas unidades de habitação; enfoque na produção massiva de moradia; alianças com o setor da indústria da construção ao invés da sociedade civil; elementos gerais para uma política habitacional revolucionária e popular: acesso à terra; sistema nacional de assistência técnica; serviços de consultoria local; CPTH; ações direcionadas a apoiar o automanejo da comunidade. Acordos imediatos: definir uma continuidade do projeto, avaliação e assistência técnica; continuar as relações entre os CTU e o MHV para promover e financiar os projetos CPTH; definir, através do MHV, um mecanismo contra os despejos; designar terras e créditos para os grupos de Pioneiros; criar um grupo de transição e definir novas estruturas institucionais; participar no desenvolvimento das leis; instalar mesas técnicas paroquiais; criar um mecanismo de vinculação direta e permanente com o Ministério.

Palavras-chave

moradia espontânea, moradia popular, moradia urbana, política urbana, gestão urbana, propriedade fundiária, pobreza


, Venezuela, Caracas

dossiê

Direito a Cidade

Notas

Essa ficha existe também em inglês y espanhol

Fonte

Bibliografia

Antillano, Andres (2005), “La Lucha por el Reconocimiento y la Inclusión en los Barrios Populares: La Experiencia de los Comités de Tierras Urbanas”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, vo.11, n.3 (sept-dic) pp.205-218

Brown & Kristansen 2009, Urban Policies and the Right to the City: Rights, responsibilities and citizenship, MOST2 Management of Social Transformation, UNESCO, UN-HABITAT, Marzo 2009, SHS/SRP/URB/2008/PI/H/3 REV

Centre On Housing Rights and Evictions 2008, Bulletin on Housing Rights and the Right to the City in Latin Americ, Vol.1_No. 3, Sept/Oct

Cariola C. and Lacabana M (2005a), “Construyendo la Participación Popular y una nueva Cultura del Agua en Venezuela”, Cuadernos del Cendes Vol. 22 (59) pp.111-133

Cariola C. and Lacabana M. (2005b), “Los Bordes de la Esperanza: Nuevas Formas de Participación popular y Gobiernos Locales en la Periferia de Caracas”, Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales Vol.11 (1) pp.21-41

CTU (2006), Acta de la Asamblea Metropolitana. Equipo de Apoyo, Julio 12, 2006

Ellner S and Myers D J. (2002), “Caracas: Incomplete Empowerment Amid Geopolitical Feudalism”,in Myers D J and Dietz HA (eds), Capital City Politics in Latin America: Democratization and Empowerment,: Lynne Rienne Publishers, Boulder, Colorado, pp. 95-131.

Gaceta Oficial (2006), Ley de Los Consejos Comunales. N. 5.806 Extraordinario del 10 de abril de 2006; n. 38.439 del 18 de mayo de 2006, Caracas.

Holland, Alex (2006), “Venezuela’s Urban Land committees and Participatory Democracy: From www.venezuelanalysis.com/articles.php?artno=1668 (Retrieved March 14, 2006)

Lajoie, Steffen (2006), Facing up to Political Dimensions: A sustainable livelihoods analysis of the housing revolution in Caracas, M.Sc. Thesis (unpublished), Development Planning Unit, University College London, London.

Majale, Michael (2005), “Urban housing and livelihoods: comparative case examples from Kenya and India”, in Nabeel Hamdi (ed.) Urban Futures, ITDG, UK, ch. 9

Núñez, Jose Rafael (n.d.), “Situación Nacional del Derecho a la Vivienda y Habitat. Balance de a la Situación del derecho a la vivienda en los últimos cinco años”, www.derechos.org.ve/propuesta_formacion/semdesc_2005/ponencias/NUNEZ.doc (Retrieved July 12, 2006)

OTN (2004), Centros de participación para la transformación del Habitat (CPTH), Vice-Presidencia de la Republica Bolivariana de Venezuela, Caracas

HIC (Habitat International Coalition) - General Secretariat / Ana Sugranyes Santiago Bueras 142, Of.22, Santiago, CHILI - Tel/fax: + 56-2-664 1393, + 56-2-664 9390 - Chile - www.hic-net.org/ - gs (@) hic-net.org

menções legais